10 - Attosegundo: Máquina de sonhos

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Talvez as mães não devessem pentear o cabelo dos filhos... Ela sempre pensava.

Na vida dos dois, em todos os dias, a rotina era a mesma: a mulher acordava, se arrumava em silêncio, preparava o simples café da manhã e então acordava o pequeno. E, como poucas crianças, ele - obediente - se levantava sereno, gostava bastante até. 

O banho era mágico: a água fria que caía fraca do chuveiro parecia não ser tão fria diante do toque quente e suave das mãos da mãe a ensaboar seu corpinho. A toalha de touca toda esfarrapada, limpinha, tinha o melhor cheiro de todos; suas roupas que quase já não serviam mais eram tão bem cuidadas que pareciam novas. A melhor parte de tudo era o momento em que a mulher catava o pente e, com todo o amor do mundo, passava por entre os seus finos fios de cabelo ainda molhados, pondo tudo para trás, deixando seu rostinho a mostra. Seus olhos puxadinhos brilhavam, contemplando, feliz, o rosto quase que angelical a sua frente. Ambos, ali, eram donos do tempo... e ele parecia eterno. 

- A mamãe te ama. - Falou a mulher, segurando lágrimas que a criança não entendia... 

O sonhou terminou abruptamente, como sempre terminava.

O homem, 75 anos mais velho que o menino dos cabelos penteados para trás, se tornara tudo o que ninguém jamais poderia imaginar: dono de uma das organizações mais valiosas do mundo. Criador do chamado Attosegundo - um dispositivo provocador de sonhos. Atualmente, bastava pôr um pequeno adesivo em qualquer parte do corpo e ir dormir... Os sonhos viriam. Só existia uma única condição: quem usasse  só poderia ser levado ao momento mais feliz de sua vida até ali.

Desde que inventara o dispositivo, não deixou de usar por uma noite sequer.

- A hora mais escura do dia é a que vem antes do sol nascer. - Ele sempre repetia o provérbio, em silêncio, para dentro de si. - Mas comigo o inverso aconteceu... A hora mais clara foi antes de tudo escurecer. 

Já em pé, vestindo um surrado conjunto de pijamas, de frente para uma imensa parede de vidro, ele vislumbrava a vida urbana fluir: luzes fortes, cores saturadas, sons de todos os tipos inaudíveis ali de dentro, arranha-céus cada vez mais megalomaníacos... tudo adornado pela noite amena. 

- É assim que tudo termina? - Perguntou-se. 

Um longo suspiro. 

- É o tempo que manda, meu caro. - Respondeu-se. 

Outro longo suspiro. Os olhos ardiam. 

- E eu só queria saber o que aconteceu com ela... Eu só queria que tivéssemos mais tempo, afinal.

Os olhos fecharam-se. 

"No fim tudo é sobre tempo. Tempo que não temos. Tempo que é dono de tudo. Tempo que por um simples capricho nos fez. Fez tudo. Tempo esse que se atrasasse um attosegundo faria nada existir. Tempo esse que se se adiantasse um attosegundo faria nada existir também... Tempo esse exato para que tudo seja como é..."

- E que vai nos guardar. - Finalizou.

Quebrando o silêncio ambiente, a porta atrás do homem irrompeu. Uma jovem senhora entrou, ofegante. 

- Conseguimos! Quebramos todos os protocolos. Não podíamos mais esperar. Está tudo aqui.  - A mulher disparou tudo de uma só vez. 

O homem, continuou a ouvi-la, ainda vislumbrando a cidade através do vidro. 

- Sente-se, por favor! 

- Pode continuar... - Ele retrucou, calmo. 

- Nós passamos por cima da justiça, em segredo. Analisamos tudo durante esses meses... Tudo o que podíamos em busca de algo... 

- Sim. E vocês não tinham autorização para isso. Os arquivos complexos são confidenciais, só dizem respeito a seus portadores. 

- Mas era a nossa única chance. - A mulher continuou. - E nós conseguimos! Nós a encontramos. 

Ele virou-se. Incrédulo. Em silêncio. A mistura única de esperança e pânico eram evidentes em seu rosto.

- Nos últimos dias, os processadores que analisavam os arquivos complexos encontraram uma particularidade extremamente rara: dois sonhos, de diferentes pessoas, incrivelmente iguais... sob pontos de vista diferentes. 

Uma pausa. Um longo respiro. 

- O seu e o de outra mulher, alguns anos mais velha que você. Acreditamos ser sua mãe! 

- COMO? 

- Veja você mesmo. 

Com um comando oral vindo da senhora, o que era a grande parede de vidro escureceu-se e transformou-se em uma imensa tela, que passou a exibir imagens que ambos ali já estavam familiarizados, contudo, ao inverso, sob o ponto de vista da mulher recentemente encontrada: 

Antes ela era vista, agora o pequeno menino aparecia nas lembranças...

O ritual de acordar a criança. O banho frio. A pele da criança em arrepios. O ato de secar o pequeno com a toalha velhinha... Os cabelos finos sendo penteados para trás... 

Em prantos, o velho gritou assustado para que aquilo tudo fosse interrompido.


- EU NÃO POSSO... PARE ISSO AGORA, POR FAVOR!

- Sua busca chegou ao fim. - A mulher disse, desligando o sistema. A cidade reaparecendo por trás do vidro. 

- ONDE EU A ENCONTRO? - Ele quis saber, aos prantos.

- Então. Usar o Attosegundo foi o último pedido dela em vida. Horas depois ela se foi, dormindo, dentro de um hospital. 



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⏰ Última atualização: Aug 01, 2018 ⏰

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