9. Em nome de nada.

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As lembranças eram frescas na memória do menino, deitado na cama precária, recluso, esperando o sono que só vinha com muito custo. E nesses quase dois anos sempre foi do mesmo jeito, em todos os dias: os traumas vinham frescos em sua mente, antes de conseguir dormir.

A casa onde viveu sempre fora alegre, como a de tantas outras pessoas em seu país. E sua família era linda, como a de tantas outras em sua vizinhança. 

Contudo, o terror chegou em sua terra, como ele sempre costuma chegar: abruptamente, de forma que não nos permite nada, além do choque. Destruindo tudo. 

A porta da residência se transformou em uma peneira com os tiros de armas pesadas. Os homens entraram. O pai gritou, implorando pela vida de sua família. Mas a sua voz fora calada. Seu corpo explodindo em sangue. O menino no canto do recinto principal da casa viu tudo aterrorizado. Um dos homens cobertos de preto da cabeça aos pés veio em sua direção. E o arrastou pelos cabelos finos. O homem berrava coisas. Queria saber onde estavam as mulheres. Mas a criança não precisou responder. Outros dois homens vinham adiante com elas. Pânico no rosto da mãe e das duas irmãs.

Os olhos do garoto viram o que não se pode ver. Ao comando do líder do grupo, a lâmina grossa da faca penetrou o pescoço da mulher a quem chamava de ami - mãe. Mais sangue. 

Choque. Caos. Terror. 

A violência continuou. O pequeno gritava aos prantos ao ver o que um dos homens estava fazendo com a irmã mais velha. E com a outra também. No fim, roupas rasgadas. Violência. Os choros silenciosos. E tudo escureceu. A cabeça dele fora enfiada em um saco de pano preto. E mais lágrimas, esperando pela morte que não veio.

Como criança, ali sozinho, adormeceu pela última vez. O próximo dia seria seu último. Ele sabia. Fora treinado por meses e, em sua cabeça, estava mais que preparado para o que estava pronto para fazer ao amanhecer.

Nos meses de treinamento, ele aprendeu a barbárie: decapitou pessoas enquanto câmeras o filmavam. Empurrou homens do alto de prédios. Atirou em inocentes e em outras crianças em seu treinamento. Havia se tornado um perfeito soldado do terror. TUDO EM NOME DE NADA.  

Tomou o café da manhã com os outros garotos de cabeças raspadas. Sentia pena deles que ficariam ali, sem ter noção do que poderia acontecer. Saber que, para ele, tudo estava no fim era um consolo. "Não será em vão", dizia para si mesmo. "Espere por mim, ami".

Um dos homens de preto veio em sua direção e o encaminhou para o lugar onde ele deveria se preparar. Ao chegar, haviam mais homens e mais artefatos - bombas, literalmente - que o normal. O medo que não havia passado antes pelo garoto, o atravessou, quando viu de fato como tudo seria. Lenta e delicadamente, os soldados atavam as peças do todo em seu corpo magro. Aquilo estava pesado, ao fim. E vestiram a roupa de soldado do terror nele também. 

Um homem se aproximou do pequeno, com uma arma grande em mãos e o entregou. Disse que foi com ela que havia matado seu pai. E com a qual ele passaria pelo último teste antes de estar pronto para o seu último ato. 

Apontou para um lugar ao longe, uns cinquenta metros à frente. Duas mulheres extremamente magras estavam amarradas juntas, nuas, sobre a terra árida. A criança as reconheceu na mesma hora. Saudade. Desespero. Por baixo do pano preto que cobria seu rosto, a raiva por tudo aquilo. Impotência. "Isso tudo já vai passar, vamos encontrar mamãe e papai". 

Mirou.

- Atire! - A voz do homem atrás dele soou. 

Um tiro. Outro tiro. Paz, para elas. 

O menino, entorpecido, mal entendia as instruções do homem quando tomou coragem para realizar seu tão aguardado último ato. O fuzil Ak-47 em mãos começou a disparar loucamente nos terroristas em volta. Eram mais de trinta. Fúria! Sua planejada vingança chegara. Ele nem sentiu quando seu corpo fora perfurado também. E tudo ao redor tremeu quando os explosivos atados em seu corpo, cumpriram sua função. 

Acabou. Descanso. 

Paz, para ele também. 


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