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A noite caiu... Saiu do estágio em um escritório de arquitetura e dirigiu-se ao ponto de ônibus, mais algumas horas de aula nessa noite e poderia ir para casa. Os dias costumavam ser cansativos, mas sempre acabavam e assim, a moça podia deitar-se em sua cama. Não era a melhor de todas... mas servia ao propósito de levar embora o que os dias traziam a ela. Era o suficiente para mantê-la em seu caminho, de projetar ruas e cidades e o mundo.

Outro dia findou-se... Assim como milhares de outros, o rapaz saiu de seu emprego e dirigiu-se para o ponto de ônibus de todos os dias. Mais uma noite no cursinho pré-vestibular. Há muito sonhava em ser advogado. Trabalhava duro para isso. Sabia que a vida não era justa, por muitas vezes, mas tinha vontade de ser mais um soldadinho do bem a lutar para que o tudo pudesse ser um pouco melhor, tanto para ele mesmo, quanto para o mundo.

A universidade onde a jovem projetava tudo, inclusive sua vida ficava em um extremo da cidade... e sua casa em outro. Já eram mais de 22h e o último ônibus estava a caminho. Esperou por ele. Ela sempre esperava por ele. Em silêncio. Seu ônibus chegou, por sorte, estava bem vazio e poucos subiram nele... No caminho, ele ficaria lotado, sabia disso. Mas como se algo errado estivesse acontecendo, não lotou. Nem mesmo ao chegar ao centro da cidade. Apenas três subiram no veículo. Dentre eles, um jovem que esperava pela condução em frente ao prédio do cursinho. Ele sempre esperava por ela.

O rapaz, ao passar a catraca e andar pelo corredor do ônibus viu a jovem sentada em um dos bancos elevados, sozinha, lendo um livro de capa branca. O banco ao lado dela: vazio. Por uma fração de segundo, viu-se sentando ali. Contudo, a outra dupla de bancos no lado oposto também estavam desocupados. Por sorte ou não, optou por eles.

A jovem acabava de terminar mais uma página do livro. Virou-a. Foi distraída pelo brilho das luzes da cidade lá fora. Elas refletiam no vidro do veículo e tornava a paisagem bem mais bonita As luzes de dentro interagiam também. Um jogo delicado de luzes em movimento e reflexos. Elas passavam, as mais próximas em velocidade maior que as que estavam longe. Aquilo era encantador. Ficou alguns instantes com o olhar fixado no vidro... Então, quando se deu conta, seu olhar estava conectado com o de alguém... sentado no lado oposto. Por mais alguns instantes permaneceram assim.

Sem entender muito o que estava acontecendo, voltou ao livro, estranhando tudo aquilo. Sorria por dentro. Faltavam alguns longos minutos ainda até a sua casa... os olhos fixos na página com textos e fotografias de obras em concreto aparente... era impossível conseguir ter concentração na leitura depois daquilo acontecer. Não estava conseguindo segurar a imensa vontade de olhar para o lado e ver, de verdade, quem era o estranho. Por fim, fez. E ele estava com o olhar fixo, fora do ônibus.

No meio de tudo aquilo, não notavam mais que o ônibus parava de ponto em ponto e que os presentes, aos poucos, estavam indo embora... Estavam praticamente sozinhos. Mas isso não importava muito. Não notavam também que o ônibus adentrou uma rodovia, como desvio a algumas obras no itinerário. Não notaram também que estavam em uma velocidade um pouco maior que o comum... Certamente o motorista estava ciente da quantidade irrelevante de passageiros e queria chegar logo ao ponto final... Talvez... Certamente...

A moça estava curiosa para saber quem era o jovem ao seu lado. O estranho que prendeu seu olhar em silêncio. Foi então que a situação se repetiu. Os olhos dele fixos no vidro encontraram os dela. Alguns instantes presos ali. Timidez. Encabulamento. Coragem. Ela permaneceu como estava e então ele virou-se repentinamente, pegando-a de surpresa. Pela primeira vez os olhos encontraram-se de verdade. Um sorriso leve de ambos. Então, veio a queda livre. O final .

De fora, viu-se o veículo ultrapassando outro e encontrando-se com uma carreta. O impacto foi tão forte que fez a frente do ônibus ficar presa ao chão, e sua traseira erguer-se em direção ao céu, numa linha reta. A carreta empurro-o assim por alguns metros. Tombou.


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