10. Safira (p.1)

302 46 166
                                    


— Você acha que estou agindo como um tolo? — perguntou Arthur a Sir. Lancelot enquanto o cavalo parecia mais interessado na cenoura que Arthur havia traficado da cozinha e trazido para ele. — Tudo bem, eu sei que você está chateado porque eu não venho te ver há dias, e que provavelmente não vai me perdoar por uma cenoura, mas eu realmente preciso de um amigo agora.

Falar em amigo lembrou a si mesmo de que Arthur havia tido um amigo. Um melhor amigo, como um irmão. E eles se entendiam, brincavam e brigavam, mas haviam sido muito importantes um para o outro no tempo em que estiveram juntos. Ele fazia muita falta, mas algumas pessoas iam embora e jamais voltavam.

— Queria que você tivesse conhecido Zac — disse ele distraído, desembolando delicadamente um nó na crina escura com os dedos. — Ele provavelmente estaria fazendo algum tipo de piada sobre ruivas ou sobre feiticeiras que estão interessadas, mas não tem interesse. Sinto falta dele — confessou Arthur e suspirou. — Zac sempre conseguia melhorar meu humor.

— Como diria Mia Couto — disse uma voz atrás de Arthur. — "Um morto amado nunca para de morrer".

Ele olhou para traz para ver quem entrava, e era Alan Martins. Arthur o conhecia há muito tempo. Os Faunos eram treinados para serem guardiões dos doze aos dezoito anos, e depois passavam mais doze anos a serviço da guarda, e quando Arthur se mudou para a Casa dos Guardiões, onde eles ficavam nos meses de folga, Alan já morava ali. Os dois tinham a mesma idade, mas Arthur atrasou-se um ano. Chegaram a estudar juntos por alguns poucos meses, mas quando os pais dele foram mortos, Arthur se recusou a voltar para o treinamento, os iniciado novamente no ano seguinte, quando havia se recuperado ao menos parcialmente de sua perda. Foi nesse ano também que conheceu Zac, que assim como ele, estava um ano atrasado, mas por um motivo bastante diferente: ele esteve doente, teve um câncer. Há doenças que nem toda a magia do mundo são capazes de curar, mas ele se curou ainda assim, e os dois acabaram sendo os únicos a terem treze anos em uma turma de iniciandos.

— Me desculpe a intromissão — disse Alan, ainda parado ali, com as mãos nos bolsos, a pele e os cabelos escuros, e um sorriso leve e amigável no rosto. Parecia estar em um humor totalmente contrário a Arthur. — Acho que acabei escutando a conversa de vocês. — Ele caminhou despreocupado até a égua malhada que estava no canto. Se chamava Flecha, Arthur sabia, e pertencia a Alan. — Imagino que ainda sinta falta do seu amigo, apesar do tempo que já se passou, mas é por causa dele que você parece tão desanimado?

Arthur sacudiu a cabeça.

— Situações complicadas.

— Parece dor de cotovelo — brincou ele, acariciando Flecha na cabeça da mesma forma como Arthur fazia com Sir. Lancelot.

— Algo assim — disse Arthur erguendo um pouco o canto da boca.

Alan beijou Flecha e andou de volta para a saída, parando próximo a ele por um momento apenas para falar:

— Hoje é sábado, Arthur. Ao invés de ficar se remoendo por seja lá qual for o motivo, por que não aproveita pra fazer alguma coisa que você gosta? — Ele deu um leve tapa nas costas do outro. — Te vejo por aí.

* * *

Arthur estava terminando de dobrar suas roupas quando Chloé entrou sem bater.

— Não veio pra casa ontem, te procurei hoje e... — ela interrompeu a si mesma no meio da frase ao olhar para as coisas de Arthur sobre a cama. Inclinou a cabeça para o lado e franziu o cenho confusa. — Arrumando o quarto? Vai chover. Chover não, cair uma tempestade.

Arthur riu e começou a colocar as coisas na mochila.

— Na verdade não — respondeu ele, e deu de ombros. — Vou sair um pouco.

— O gostosão vai pra onde? — perguntou ela se sentando na beira da cama. — Eu fui lá em casa ontem, papai e mamãe querem saber por que você ainda não foi lá desde que chegou.

— Bom, eu vou pra Nova York agora, mas pretendo voltar amanhã cedo e ir almoçar com eles e Dean. Prometi pra ele que ia aparecer por lá. Por que não vai também?

— Vou sim — confirmou Chloé. — Mas por que resolveu sair agora?

Arthur olhou pra ela e inspirou, parando por um minuto com a mochila aberta.

— Transei com Diana — contou ele e mordeu o lábio inferior.

Chloé arqueou as sobrancelhas.

— Ok, já esperava por isso, mas por que está arrumando suas coisas? Pretende se mudar definitivamente pra casa dela? — Ela refletiu por um minuto. — Eu sentiria sua falta, mas você já vive lá o tempo inteiro desde que... — ela baixou a voz — desde que Lívia chegou.

Arthur riu se sentindo embaraçado, fechou o zíper e deixou a mochila de lado para se sentar na cama próximo à irmã, se preparando para narrar os acontecimentos, desde a noite anterior até a manhã, omitindo apenas o acidente com as poções e mais alguns detalhes sórdidos que achou que Chloé não faria questão de saber, e que ele certamente não desejava contar. Ela ouvia com atenção, de vez em quando franzindo o cenho ou arqueando as sobrancelhas, mas sem falar até o ponto em que ele disse ter ido embora da casa da feiticeira.

Foi aí que ela semicerrou os olhos e balançou a cabeça antes de falar:

— Você é um babaca.

— Por que? — ele perguntou quase não conseguindo segurar a risada.

— Vamos fazer uma pequena análise — disse ela trançando os dedos e colocando as mãos sobre o peito. — Você e Diana foram lá e fizeram suas coisas impronunciáveis. Certo. Daí no dia seguinte ela te diz pra ir embora e dá a entender que preferia que você ficasse com Lívia, e você aceita isso numa boa?

— Bom, falando assim, realmente, parece péssimo.

— Aham. Aí você completa indo lá e beijando Lívia, que não tem nada haver com isso.

— Bom, beijar não tira pedaço — brincou ele. — e ainda foi bem agradável.

— O que só confirma o que eu disse. Você é um babaca — disse Chloé e balançou a cabeça. — Na verdade, você é um babaca ao quadrado — concluiu ela. — Agora, vejamos seus planos para hoje: ir pra outro país, encher a cara e ficar atrás de alguma mulher qualquer. Acertei?

— Algo assim.

— Então concluo que você é um babaca ao cubo.

Arthur riu, porém logo começou a apertar as juntas dois dedos da mão.

— Você lembra quando eu falei dos centauros? — disse Arthur, e Chloé assentiu. — Eu estava pensando sobre o que Fausto disse, que a feiticeira tinha um coração gelado e não era eu quem estava destinado a aquecer. Acho que tive que aceitar que isso era verdade quando já era tarde. Agora uma parte de mim se recusa a deixar Diana pra lá, mas outra parte sabe que é exatamente isso que eu tenho que fazer. Eu estou me sentindo mal, e não dá mais pra voltar atrás. Então quero pelo menos fazer alguma coisa que me deixe um pouco melhor. — Ele se levantou e jogou a mochila nas costas. — Vá ver Lívia, ela também brigou com Diana e deve estar se sentindo sozinha agora. — Arthur beijou a irmã suavemente. — Estou voltando pra Nova York, te vejo amanhã.

Anjo de ÁguaWhere stories live. Discover now