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O silêncio fala comigo.

Ele ri da minha miséria humana. Ri do destino que me esbofeteia a cara; ri dos meus sonhos desafortunados. "Pobre menininha!" ele cospe com escárnio, "Tão pequena, tão esquecida, tantos pesadelos e sonhos!"

Tento gritar para o silêncio que ele está errado, que serei feliz...

E ele se desfaz em neblina com minhas ondas sonoras, vagueando até encontrar outra alma silenciosa.

Estou caindo, caindo, morrendo.

Então acordei, ofegante. As paredes vibravam com o burburinho do lado de fora, minha alma gritando com uma nova possibilidade.

Porque é só isso que miseráveis pensam: Nas possibilidades, na irrealidade, na utopia fantástica que o destino poderia reservar.

O cheiro de incenso amadeirado e café preencheram o ar, uma neblina pesada esgueirando-se para dentro quando minha irmã irrompeu pelo quarto, aos brados.

- Anda logo! O ônibus passa em cinco minutos! - Sua voz ecoou em minha cabeça como um sino inconveniente. Devolvendo-lhe um pequeno aceno com as mãos, levantei correndo em direção à cozinha e logo fui tomada por uma floresta de cachos negros bloqueando minha visão. Tomando uma lufada preguiçosa de ar, amarrei meus cabelos como um ninho acima da minha cabeça.

Ah, tinha esquecido que além de minha vida estar completamente deslocada, meu cabelo tinha vida própria.

- Cecília! - Berrou Amanda, minha irmã, fazendo seus cabelos castanhos encaracolados sofrerem penteando-os com pressa e habilidade, enquanto juntava os livros na mochila e colocava seus óculos vermelhos em seu rosto moreno.

E ela só tem sete anos.

A geladeira, preguiçosa e velha, rugia todas as engrenagens quando olhei a sua imensidão desértica. Minhas bochechas ganharam um tom de cobre, como sempre acontece quando fico nervosa. Sem pensar, corro até o quarto da minha mãe, intempestiva porta adentro.

- Mamãe, eu peço uma única tarefa - balancei as mãos, tentando dispersar a fumaça para enxergá-la - e você absolutamente esquece!

- Por favor, Lia. - ela cochichou, levantando o turbante que cobria seu rosto magro. - Tenho uma cliente muito importante a caminho, eu tive que usar seu dinheiro para comprar cartas de tarô, eu... - Mamãe contrai seus ombros muito magros, segurando debilmente novas cartas de tarô nas mãos. Seus olhos estavam marejados de vergonha. - eu devolverei seu dinheiro.

Senti-me impotente, frustrada, aterrorizada e raivosa ao ver minha mãe. Desde que tudo aconteceu ela se fechou em seu mundo e suas convicções. Uma vidente charlatã. Uma desconhecida.

Sinto que a estou perdendo, perdendo, perdendo a cada minuto. Como se ela fosse menos minha a cada instante. Como se ela estilhaçasse quando a repreendo por esconder-se. Estou perdendo minha mãe e só consigo ficar raivosa com ela a cada espaço de segundo. Pela ausência em relação à Amanda; pela falta de afeto, de alma.

Eu a amo, onde quer que ela esteja nesse novo mundo só dela.

- Não precisa devolver, Mamãe. - lhe dei um sorriso forçado, tentando achar o caminho para a saída em meio à densa fumaça de incenso. - Mando alguém do Cipriani trazer o seu jantar.

Não dando tempo para ela responder, saí do quarto puxando Amanda para fora de casa.

- O que aconteceu? - ela pergunta, mordendo um sanduíche - Está tudo bem com a mamãe?

OVO FRITOWhere stories live. Discover now