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Se já achara improvável a perda de clientes do Cipriani sem ver o restaurante, agora estava quase tendo um colapso. Espremido entre os prédios granfinos e imponentes do Leme, bairro da zona sul do Rio, o Sparvoli consistia em uma construção de dois andares modelo italiano barroco de tijolinhos aparecendo e sacada de ferro fundido com gerânios caindo em cascata. Aquele prédio parecia ter parado no tempo em comparação com os seus vizinhos. Como esse restaurantezinho poderia atrair tanta gente refinada? Para quem estava acostumada com a grandiosidade magnífica do Cipriani, estar ali era como um balde de água fria.

Bato na porta da frente com o coração pulsando aos meus ouvidos. Siga o que combinou. Fale o que ensaiou, digo para mim mesma quase como um mantra até ouvir um barulho na maçaneta e a porta ser escancarada.

– Eu recebi a confirmação do meu currículo por telefone e vim para a entrevista. Bem, eu...

Fui cortada pelo homem que estava me esperando do outro lado da porta.

Eu falei com você no telefone. Não está ansiosa demais para lavar pratos não? – Ele está de costas, mexendo no balcão da recepção. Finalmente pega o papel que procurava e vira-se para mim, encarando meu rosto. Retribuí o favor, observando as feições de um senhor de cinquenta anos muito mal humorado.

– Bem, estou realmente desesperada. Minha mãe está doente e minha irmã só depende de mim para sustentar a família. – Nem uma respiração fora de ordem. Mesmo com a desculpa esfarrapada a mentira saiu perfeita

– E nós também estamos. O movimento aqui está frenético! – Ele passou a mão pelos cabelos ralos e depois pelo blaser – A propósito sou Francisco, o sommelier. – Com movimentos muito rápidos, puxou a minha mão, seus lábios tocando levemente o dorso. Foi um movimento sutil, feito para ser cortês e discreto.

O que é claro, me atingiu como um coice de mula. Quem beija mãos no século vinte e um?

Francisco saiu andando como se os meus olhos arregalados fossem cotidiano. Pelo que vi no estacionamento, estava explodindo de gente plena seis da tarde.

Mas não é um restaurante cinco estrelas. O que tem de tão magnífico aqui que não tem no Cipriani?

Abro a porta.

O som da banda preenche o ambiente valsando com o cheiro extremamente fabuloso, formando um espetáculo de vida e sentidos. Tudo parecia mais vivo com crianças correndo entre as mesas e risadas ecoando pelas paredes de pedra. A etiqueta, que se violada provocava olhares depreciativos, era apenas um detalhe naquele local e vi vários dos nossos clientes mais fiéis dançando desajeitadamente na pista. Agradeço como nunca antes por só ficar na cozinha, já que ali nunca seria reconhecida.

Decorado em tons de cobre, a área das mesas seguia a linha de decoração da fachada, com as mesas dispostas em um grande círculo que se abria para uma pista de dança. Um pequeno palco se encontrava ao lado do bar, onde uma bela coleção de vinhos ornamentava o fundo. As cortinas de voil balançavam lentamente de acordo com a brisa que chegava pela janela e ouvia-se ao longe o barulho da cozinha.

Corta a cena melosa. Espaçamento entre as mesas?Zero. Uma criança acabou de tropeçar no garçom e chorava, estatelada no chão. A banda tão alta que as pessoas tinham que gritar para serem ouvidas. Muitas mãos, pés e braços em abraços largos; gargalhadas cheias e olhos pequenos alegres de vinho tinto.

– Que lindo. – Eu tive que admitir em voz alta. Tentando despertar-me do torpor, Francisco empurra meus ombros gentilmente até a cozinha, tagarelando.

– Não fique tão animada, você não viu o tanto de trabalho te esperando. Ah, da próxima vez tente usar a entrada de funcionários, ela se encontra atrás da casa e não é tão difícil acha-la assim. Você precisa usar esse uniforme aqui – Ele jogou as roupas brancas na minha cara – lembre-se de manter o uniforme sempre limpo, o chef pira com desorganização. Bom, vamos entrar na cozinha e eu...

– Ai meu Deus! – Pilhas de pratos, talheres, guardanapos e panelas se aglomeram por todos os lados de um jeito que quase fica impossível acreditar que algo ainda não está sujo. No chão, há uma mancha de algo indecifrável e as paredes ostentam respingos de molho de tomate por todos os lados.

Para quem estava acostumada com a impecabilidade do Cipriani, olhar aquela cozinha me fez sentir na idade média.

– Peço desculpas – Francisco estava constrangido, balançando nervosamente sua aliança no dedo. – Não tínhamos uma copeira ainda, o movimento tão grande não foi esperado.

– Eu não entendo. Que tipo de chef é esse que permite uma imundice dessas em uma cozinha profissional? Vocês tem ideia do quanto vão pagar de multa se a vigilância sanitária chegasse primeiro que eu? E... – Meu olhar é levado para o vidro da porta, encontrando o reflexo de uma figura de costas para mim perto o suficiente para ouvir o que eu estou falando. Merda. – Quer dizer... – tusso para dar tempo de formular uma mentira – eu também não tenho tanta ideia assim já que...

Ele se virou e eu finalmente vislumbro o seu rosto, enquanto ele dava uma boa checada em mim. Ele sorri com dentes abertos, de alma inteira. Seu rosto é anguloso na medida certa o que lhe dá um aspecto de homem durão, mas seus olhos azuis e as covinhas assumiam prontamente a sincronia perfeita. Não era um chef comum, de movimentos delgados e leves; se não notasse a barba bem-feita acompanhada de unhas bem cortadas podia facilmente ser comparado com aqueles ferreiros dos livros de romance medievais.

– Sou Enzo Sparvoli, e tu sei... – Nossa mãe, as covinhas aparecem até enquanto ele fala.

– Cecília Abreu. – Eu estendi a mão e ele me puxou, dando beijinhos nas minhas bochechas. Ele tinha cheiro de comida, hm.

– Seu trabalho começa já, Chechília. – Seu sotaque era tão carregado que gargalhei internamente quando ele pronunciou o meu nome. Ele percebeu meu rosto vermelho a ponto de explodir na gargalhada e resmungou tão baixo que não pude ouvir. – Acabamos de abrir o restaurante e já estamos com casa cheia até a próxima semana, estou ficando maluco!

Ele estava tão animado que eu guardei a resposta felina e dei de ombros com um sorriso falso. O cara era um gato e tudo mais, mas estava na hora de enxergar a realidade: era uma espiã esperando um erro dele para abocanhar a receita secreta.

– Bom, vou começar meu trabalho – Tentando evitar uma possível conversa que me induziria ao erro, voo até a pia que formava uma pirâmide sem fim. E lá vamos nós: Cecília sofrendo como sempre, não importa se em um restaurante cinco ou três estrelas.

Pelo menos não tem nozes.

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Olha eu aqui! Vocês não imaginam tudo que aconteceu para eu não postar o capítulo! Mas ufa, aqui estamos ❤
Prometo que o próximo será um pouco maior, não deixe de comentar! 

OVO FRITOWhere stories live. Discover now