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Eu nunca escolhi me guardar para o final.

Sempre vivendo tudo intensamente; mãos, pés, beijos e lágrimas: não poupei nada. Estava lá para ele, crua, todas minhas suturas na carne exposta de dor e amor que construí cada dia da minha vida. Minha pele se aconchegou à lembrança do cheiro de comida dele, das mãos grandes espalhadas pelas minhas costas como o barro de um artesão, do sorriso largo que engolia meu mundo.

Não importa, lavei minhas mãos pela enésima vez na cozinha do Cipriani, tinha acabado. Eu estava acabada: O movimento de natal frenético e insuportável graças à receita do peixe fazia meu corpo chorar. Finalmente eu deixara de ser uma ninguém, tinha assumido o posto de segunda cozinheira, mas meu humor não poderia estar mais miserável.

- É Natal, Lia, não Halloween. Sai dessas trevas! - Mari grita enquanto eu bato a massa de pão com a alegria de uma viúva.

- A gente precisa de uma bomba atômica para que essa aí demonstre alguma reação - Alfredo, primeiro cozinheiro, sorri para mim. Cansada demais para rebater, vou até a despensa buscar mais ovos para minha receita. E então eu vi.

Minhas mãos tão congeladas que deixei a bacia que segurava cair, uma bagunça de farinha e fermento aos meus pés enquanto meus lábios se repuxavam em um sorriso enferrujado. Todos os ovos tinham carinhas desenhadas: personagens se beijando, velhinhas bravas, bebês chorando e pequenos coraçõeszinhos. Escondido entre as prateleiras de ovos, estava um pequeno cartão.

- Me dê isto aqui! - Finamore arranca o cartão em minha mão, a bagunça que fiz atraindo todos os cozinheiros, e lê em voz alta - "Um ratinho entrou em minha cozinha e alguém o pegou de volta. Me parece que esse alguém merece ser castigado. Tenham um natal divertido! Addio!"

Todos estavam observando Finamore tornar-se roxo, como se ele tivesse se afogando naquele minuto. E naquele momento de silêncio, finalmente percebemos o som ambiente da banda clássica: Eles estavam tocando a versão acústica de Pablo do Arrocha.

A partir daí tornou-se uma confusão de pernas e braços, todos querendo chegar ao salão, o Chef francês gesticulando muito para a banda parar, arrancando as partituras e jogando-as para cima. A chuva de papel caía nas mesas refinadas dos clientes assustados e eu só conseguia sorrir em meio ao caos.

Enzo havia instaurado uma guerra. Por mim.

As portas do salão se abriram e um grande grupo entrou carregando com eles sacolas, caixas térmicas, um pandeiro, um guarda-sol com a propaganda de uma cerveja desconhecida e quatro crianças que tinham aquelas bóias de braço que por si só já são um imenso volume. Como se não bastasse a comoção, o homem mais velho do grupo tomou à frente com um sorriso divertido no rosto.

- Nós temos uma reserva.

**

O Cipriani não é conhecido como o melhor restaurante do Rio de Janeiro à toa. Tudo naquele lugar foi pensado milimetricamente à perfeição, das mesas ao lustre. Tudo naquele lugar cintilava refinamento.

Por isso, quando a excursão da batucada chegou se esforçando ao máximo para anunciar sua presença, ninguém sabia o que fazer. Papai não sabia a quem explicar a cartela de vinhos, os outros clientes saíam como se tivessem ofendidos pelo simples fato deles estarem lá, Finamore sentava-se em sua mesa, gritando ordens e blasfêmias enquanto passava o seu paninho inútil várias vezes na testa suada.

Quando o grupo acabou de ser servido e pagou a quantia absurdamente alta, não havia mais ninguém e Finamore virou-se para mim.

- Se eu souber que isso tem algum dedo seu... Gosta tanto assim de uma justa causa?

OVO FRITOTempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang