06

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Naquele dia 2 de dezembro, o silêncio da casa explodia em tempestade do lado de fora.

Amanda não bateu em minha porta, como todos os dias, ainda estava dormindo no colchão de baixo. A cama me sufocava, meu estômago revirava.

Quando abri a porta do quarto, os cabelos curtos e despenteados da mamãe esparramavam-se no sofá. Ela olhava para a TV desligada, os olhos muito fundos e doídos.

- Estou indo trabalhar - constatei apenas para quebrar o silêncio, agitando as mãos.

- Está tudo fechado - mamãe balbuciou - a tempestade já derrubou três árvores.

- Não consigo ficar aqui, está doendo demais, mamãe.

E ali estava. O assunto proibido.

- Todo dia é 2 de dezembro para mim - ela confessa, olhando para a televisão - não consigo fugir da minha própria cabeça o tempo todo.

Queria deitar em seu colo e chorar aquele luto para fora de todos nós, mas saí pela porta com os olhos secos. Quando bati no apartamento de baixo, Alice me atendeu. Seus cabelos formavam um ninho em torno de sua cabeça, o nariz muito vermelho.

- Ali, o seu pai está em casa? Preciso ir trabalhar e está tudo fechado - ignorando propositalmente seu estado, juntei as mãos quando não sabia o que fazer com elas.

Seu Paulo apareceu atrás dela, já com as chaves na mão. Deu um leve beijo em Mari, que não estava no Cipriani graças à tempestade.

Ele sabia que eu estava fugindo.

- Lia, nós precisamos que você vá hoje - Alice tocou a minha mão, seus dedos macios alisando a minha palma como se ela tivesse lidando com um animal assustado. Instintivamente, me retraí.

Eu era um animal assustado, machucando-me com as próprias garras em meio ao horror.

- Eu vou trabalhar - repetia, como uma corda de salvação em meio a culpa de não ser quem minha amiga precisa, enquanto descia as escadas e entrava no táxi do Seu Paulo.

**

Entrei no Sparvoli pela porta dos fundos, correndo para fugir do vento e da chuva. Estava escuro e vazio, e eu esperava que continuasse assim. Peguei uma bomba de chocolate, geralmente servida como sobremesa, e enfiei toda de uma vez na boca. Ao lado, no refrigerador desligado, estava o peixe da receita secreta.

Se eu ao menos pudesse pegar uma amostra...

- Chechília? O que faz aqui? - o tom acusatório me paralisou. Lá estava Enzo, com olhos de sono, descendo as escadas da cozinha.

- Eu vim... eu... eu não tinha para onde ir...

A realidade esbofeteou-me na cara. Minhas mãos tremendo, o vermelho da traição pintando meu rosto, sangrando em minha pele. E, quando o meu olhar tocou o seu, a agonia da perda do último ano explodiu pelos meus poros.

Queria lavar os pratos inexistentes, então me lancei na pia, abrindo a torneira demais, a água me ensopando. Estava de joelhos, meu corpo rachando da dor que engoli em seco por tantas vezes, agitando-se com soluços que não consegui mais segurar, minha dignidade dissolvendo-se em lágrimas guardadas.

- Venha, Margherita - ele ajoelhou também, limpando as minhas lágrimas com seus polegares quentes e gordinhos - vamos limpar essa bagunça.

Totalmente alheio ao caos de água que se instalava, eu sabia que Enzo não estava falando da cozinha.

**

Ao subir as escadas atrás de Enzo, descobri que entrei em um pequeno apartamento. Caixas espalhavam-se em toda parte, uma bagunça generalizada. Logo uma toalha enorme foi enrolada em mim, como um charuto.

- O que aconteceu para deixar você assim? - ele me encarava, enquanto caminhava com suas mãos pelos meus ombros. - Por que seu celular não para de tocar?

Saio do torpor e me assusto com o toque estridente. Tento pegar meu celular e falar com Alice, mas não consigo. O rosto do Enzo, seus olhos sem pena... eu precisava daquilo.

- Bruno. O meu irmão se chamava Bruno.

E então, pela primeira vez, eu falei.

Era jogo do flamengo. O Bruno era apaixonado pelo flamengo. Na verdade, ele era apaixonado por tudo: pelo Beirute do seu Rami, o modo como raspadinha deixa a cara da Amanda toda azul e pela Alice. Especialmente pela Alice.

A história dos dois é daquele amor que demorou uma vida para nascer. É fogo que arde e incendeia a calma, que dá vontade de sorrir a cada reviravolta.

Mas isso a gente deixa para outra hora. Por que era jogo do flamengo.

A Jujú havia acabado de nascer, mas ele estava no estádio. E, por aquele pequeno pacote de apenas 3kg, ele saiu de lá bem antes do apito final. Cortou a fila de carros, saiu gritando a felicidade dupla: O time, quase campeão. A filha, recém nascida.

Seria um dia bom se o Bruno não fosse dentista bucomaxilofacial da maior emergência pública próxima à Cidade de Deus, o que é um nome chique para quem cuidava de gente com tiro na cara.

Mas aquele não era um dia bom, e o telefone dele tocou, assim como o da polícia. Um menino do tráfico com ferimento a bala no rosto em estado crítico. Um menino de 14 anos.

Voou para a sala de emergência, sem importar-se com a camisa de time e a cara pintada. Colocou luvas enquanto corria, coração acelerado como sempre. Ainda esbravejava ordens, quando a PM o encontrou em sua entrada abrupta no pronto-socorro.

No laudo da polícia, o disparo letal decorreu de atitude suspeita. Eu sei qual era a atitude suspeita dele.

Era negro. Estava com a camisa do flamengo e corria. Ironicamente, diante de provas tão sólidas, esqueceram um detalhe: Bruno tinha antes o rosto limpo de quem nunca levou um tiro.

- Io sinto tanto que vocês todos tenham que passar por essa dor. O seu irmão foi muito amado por pessoas incríveis - Enzo massageava minhas mãos, tentando me passar um conforto que nunca vinha.

- Isso virou um assunto proibido. No prédio, apenas vivemos nossas meias vidas em torno dessa ausência torturante - funguei, de repente envergonhada demais - Alice quer acabar com isso. Quer um natal bom para a Jujú e para todos nós. Hoje o pessoal vai ao hospital que ele trabalhava tentar encher a falta dele com amor - Enzo não sorriu com meu tom irônico - estão fazendo uns balões ridículos, programando músicas para os internados...

- E por que não está lá participando disso? - seus olhos apertaram-se nos cantos.

- Eu estava sufocada com tudo. Não tenho nada de bom para oferecer! - confessei em meio suspiro, em palavras cortadas.

- Isso não é verdade. Um infortúnio na minha cozinha, uma grande queda de energia e meus refrigeradores quebram, veja só! Eu não poderia deixar tudo perder!

- Você não poderia deixar tudo a perder. - acompanhei com os olhos enquanto ele se pendurava no começo da escada.

- Alguém tem que comer os meus ingredientes.

Uma erguida no canto dos lábios do homem do sorriso largo deveria ter me alertado.

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Notas da Autora:

Amigos.
Coincidentemente, enquanto esse capítulo estava sendo escrito, Tatiana perdeu seu filho. E, em meio a dor e desespero de tamanha notícia, ela ainda teve que lidar com ameaças e xingamentos ao seu filho e a ela. Como se o luto tivesse cartilha e cor.
Esse capítulo é dedicado a todas as famílias e bairros inteiros devastados pela dor todos os dias.
Eu tentei, com todo meu coração, pincelar um pouco dessa perda a altura da dor humana. Foi extremamente difícil.
Parem de matar nossas crianças.
"A PM matou o meu filho. Essa dor nunca irá se cicatrizar." Tati Quebra Barraco

OVO FRITOOnde histórias criam vida. Descubra agora