24. Quaresmal [Ernane Catroli]

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(...) to live with my mother in her old age, and mine.
(in: Poems)
R. Carver

Conhece-os de outras paragens e os procura pelos cômodos da casa. Tão pálidos. Espectros. E trazem todos as mãos ocupadas. Uma gaiola, um anzol, uma bússola, um isqueiro aceso. Borboletas de asas urticantes voejam ou pousam nas paredes, nos móveis. Já antes, as estampas de santos em molduras, entremeadas de espinhos e cacos de vidro – como dentes afiados - no chão que pisava. E não sei se já lhe disse que tomamos conta de um menino! Um menino inquieto. Agora ele deve estar na escola. E não esqueça que preciso ir para a minha casa. Por que ainda estamos aqui?

Que perdeu dois filhos, a coragem, os dentes, o brilho dos olhos. Dois filhos. Era tarde avançada quando fui buscá-los seguindo a linha do trem até aquela primeira meia curva. Tinham saído muito cedo para pescar e armar arapuca para passarinhos. Paixão por passarinhos. Passava muito da hora do almoço. O bambuzal tombado pelo vento. O zumbido do vento. Um temporal. Ainda assim os meus gritos. Quanto às alianças de noivado, ali mesmo na loja colocamos nos dedos. Sábado. Manhã de sábado. Agora elas estão aqui. Dentro da minha viuvez. Dentro do pesadelo.

Antes de dobrar a esquina me virei. Ela acenava da entrada do beco sob a luz amarela de um poste da avenida. Madrugada. Último horário do ônibus. E o Rio. O Rio quando ainda os visitantes não haviam chegado.

Anoitecia quando deixamos o consultório do médico. Enquanto esperávamos um táxi, ela baixou a cabeça, brincou com um botão frouxo da minha camisa; secou uma lágrima. Depois procurou meus olhos. De mãos dadas ficamos em silêncio. Um misto de dor e compaixão. O amor mais forte agora. A revolta. Também ódio. E o medo maior. Algo muito grave nos aconteceu. Foi quando comecei a me despedir.

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Clube dos Escritores - Talentos do Texto CurtoWhere stories live. Discover now