17. Meu capataz [Divino Ângelo Rola]

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Olho o relógio roendo o dia, analiso a aurora e sua jovialidade, o ar que me sopra tem um cheiro de novo, mas o relógio vai comendo silenciosamente, colocando peças velhas por cima das novas, não demora muito, tudo está tão adulto, a brisa já cheira a passados, coisas com seu tempo de vencimento nas últimas horas, de repente o dia entrega suas forças, pronto, tudo terminado: o último suspiro, os últimos choros ou os últimos sorrisos.

Não há perdão, os ponteiros do relógio compõem uma engrenagem ditadora, e ele não tem pressa, está ali na parede, eu o observo com seu formato oval, simples, barato e cruel.

Começo a me preocupar, sou um servo, preciso bater o ponto, mas o corpo está querendo sentir os prazeres do lar, o sofá da sala, o café escondido no escuro da garrafa, o canto dos pássaros encerrando a tarde, a cama repousando sob a colcha branca... tudo ficará para trás, preciso me apressar, lá vai o relógio apertando a fivela, mandando em mim, tenho que obedecer, sou um servo, tenho que pôr o pão na boca dos filhos, não há mais tempo nem para chorar, o tempo que resta é o suficiente apenas para abrir e fechar a porta.

E lá fui eu deixando minhas vontades para cumprir com as obrigações. No trajeto me veio o pensamento: nada mudou, criaram o relógio para substituir o capataz.

Depois de uma noite de labuta, volto para casa, abro a porta, o relógio me olha, no seu silêncio me fala, leve os meninos pra escola, tire o bolo do forno, o leiteiro está chegando, daqui a pouco é hora do dentista, chego a querer destruí-lo, mas recolho meu ímpeto: não adianta, sou um servo da modernidade, a pressa faz parte da nossa cultura, não tenho que reclamar, sou um escravo que na correria procura a felicidade, mas onde encontrá-la? Não tenho tempo nem para pensar, ele é meu dono, esta estrutura fria que fabrica loucos, disposto na minha parede, ditando meus passos, exatamente como um antigo capataz.

Clube dos Escritores - Talentos do Texto CurtoWhere stories live. Discover now