1. Virgem

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Eu não sei qual dos meus amigos colocou a música do Wesley Safadão no meu despertador.

Quem ainda coloca música no despertador? Mas a questão é que os primeiros dias eu deixei já que daquele jeito eu me levantava mais rápido pra não ter que ouvir a música inteira. Só não contava que eu ia estar cantarolando os primeiros segundos da música duas semanas depois.

- Cinco dias, uma hora, dez minutos que eu não te vejo...

- A Julia tá cantando Wesley Safadão! - Carol, uma das minhas melhores amigas, apontou na minha direção, dando pulinhos enquanto mantinha um enorme sorriso no rosto - coisa que era raro dela já que era mal humorada do grupo.

- Misericórdia. - Guilherme murmurou, negando com a cabeça enquanto tirava os olhos do seu celular para olhar no seu rosto.

Ergui uma sobrancelha pra ele em desafio, esperando alguma gracinha da sua parte, mas ele era sábio o bastante para saber que eu o lembraria de sua cantoria no chuveiro. "Amante não tem lar, amante nunca vai casar" estava em um patamar de vergonha acima de Wesley Safadão.

Talvez eu devesse criar uma playlist no Spotify com o nome "músicas que amamos e nos envergonhamos por isso".

Esperei algum comentário de Heloísa - ou Lola -, mas a garota continuava concentrada demais em dormir em cima da mesa do refeitório.

- Não estou te ouvindo. - Cantarolei no ritmo da música que eu havia aprendido completa. - Estou ocupada demais estudando pra cuidar dos seus cachorros.

- E gatos. - Carolina corrigiu. - Gosto de gatos.

- Você estuda muito. - Heloísa resmungou, enquanto levantava a cabeça com os olhos ainda fechados e limpava o resquício de baba que escorria de sua boca.

- Ela é virginiana. É a definição que uma pessoa de virgem. Se tiver um dicionário de signos com fotos, a dela com certeza vai estar do lado da definição sol em virgem.

- Ah não, você não me venham falar de signos. - Revirei os olhos.

- Você é muito altruísta, mas também é exigente demais. Por isso não faço mais trabalho com você, me estresso. Fora que a sua organização em qualquer lugar me deixa boquiaberta, me ensine a ser assim. - Carolina continuou, sem se incomodar com a minha reclamação.

- Ótima definição. - Resmunguei.

- Mas calma, você também é mesquinha. Não empresta nem um lápis!

- E eles voltam pra eu te emprestar, Carolina? - Bati o caderno na mesa, encarando-a nos olhos agora.

- Não sei de nada. Só não gosto de gastar o meu dinheiro com bobagens, tipo um lápis.

- E o meu dinheiro eu posso gastar?

- Não briguem, meninas. - Lola interviu.

- Só estou dizendo. O único signo que não vi defeitos foi Libra. - Carol suspirou.

- Que é o ascendente do Lucas. - Eu, Gui e Lola completamos juntos uma frase já tão conhecida.

O repetente Lucas Castro é o amor da vida da Carolina - ou é isso o que ela diz para si mesma há três anos. Ele foi o garoto que tirou a virgindade dela e de mais metade da população brasileira. Eu e Lola não deixamos nos levar como ela, na época eu disse que ela corria o risco de se apaixonar, mas ela vivia com a ilusão de que era "coração gelado" por causa de seu signo. Três anos depois ela ainda acha que eles vão namorar e, mesmo mostrando à ela o que ele é, a minha amiga continua com a sua própria ilusão.

- De qualquer modo, eu não acredito em signos. - Desdenhei das suas explicações astrológicas, como sempre fazia.

- Continua dizendo isso que eu faço você fazer uma pesquisa antropológica e beijar todos os signos do zodíaco, como naquele livro. - A garota levantou os braços e deixou as mãos esticadas na minha direção, os dedos de mexendo freneticamente, como se ela jogasse um feitiço em mim.

- Os 12 signos de Valentina? - Gui perguntou e a nossa amiga assentiu. - Adoro esse livro, me definiu perfeitamente.

- Sem spoilers, eu ainda estou lendo. - Lola interviu antes que algum dos dois soltasse mais alguma coisa.

- Você sabe que eu não sou de ficar com várias pessoas.

- Você só quer encontrar o amor da sua vida, casar, ter filhos e uma vaca. Eu sei disso, Julia. Todos sabemos. - Carolina continuou resmungando. - Mas eu ainda acho que você perde a oportunidade de beijar bocas demais.

- E de sair com os seus amigos! - Gui chamou a minha atenção. - Onde já se viu deixar de sair conosco pra ficar enfiada nos livros, Julia Silva?

- Acho que eu tenho o direito de não querer ficar de recuperação como vocês. Enquanto vocês estudam, eu estou de férias. - Dei de ombros.

O sinal para as próximas aulas tocou e eu me levantei, agradecendo aos céus por aquela conversa se finalizar. Não sei quanto tempo mais argumentaria que signos era uma bobagem que alguém tinha inventado para as pessoas fazerem besteira com base no que estava escrito em uma revista ou página na internet.

Tentei ao máximo prestar atenção nas aulas enquanto ouvia meus amigos tagarelarem sobre signos. A maioria eu ria, pois sabia que era uma mentira deslavada que eles haviam lido em algum lugar da internet, mas aquilo não dava margem para eles brigarem comigo - a maioria das vezes eu via Gui e Lola fazendo um sinal para que Carolina se contentasse em me responder malcriada. O que me impressionava ali era ver Guilherme, o nerd do nosso grupo de amigos, interessado em um assunto como aquilo. Na maioria das vezes ele sabia mais que as minhas amigas e dividia informações que parecia impressioná-las.

- Se eu morri, com certeza estou no inferno por ter que aguentar vocês falando de signos. - Mexi no celular, verificando uma mensagem da minha mãe.

Alessandra: Estou indo, Julia. O Davi está com você?

- Nossa Julia, você tá insuportável. - Carolina reclamou. - Vazei! - A garota beijou os dedos indicador e o médio antes de fazer a simbologia de paz e amor para nós, entrando no carro de seu pai.

- Isso é verdade, amiga. - Lola concordou. - Mas me diz, não tem nenhum gatinho à vista?

- Nenhum que esteja à minha altura. - Dei de ombros.

- Nem gatinha? - Guilherme ergueu as sobrancelhas duas vezes.

Dei um meio sorriso e balancei a cabeça em negação.

- Não, Gui. Pode não parecer, mas eu sou muito exigente. - Fiz uma careta.

- Exigente até demais. - Meu irmão mais novo se aproximou e eu vi a minha amiga corar. - E aí, Japa? - Piscou para ela, que deu um aceno breve na direção dele. - Nerdão. - Cumprimentou Guilherme com um toque de mãos, um que eles repetiam por anos a fio.

Depois de tantos anos de amizade com eles, meus irmãos já estavam mais do que acostumados em fazer gracinhas com meus amigos. Ou até mais que gracinhas, como era o caso de Lola.

- Vamos, seu tonto. - Puxei o garoto para o carro que acabava de estacionar em frente ao colégio Veríssimo. - Tchau, mais tarde nos falamos. - Acenei para os meus amigos que acenaram de volta.

Entrei no banco da frente - devidamente reivindicado por mim depois de ganhar com louvor uma partida de FIFA contra Davi - e cumprimentei minha mãe com um resmungo, como sempre fazia.

- Como foi a aula?

- Teria sido ótima se meus amigos tivessem calado a boca. - Continuei digitando no celular em um grupo qualquer do Facebook.

- Você devia ser mais simpática com seus amigos, vai acabar sozinha desse jeito.

- Você sabe que eu odeio falar de signos, mãe. - Reclamei, dessa vez mudando a estação da rádio.

- Qual o problema de se esforçar um pouco para entender o assunto para se infiltrar na conversa? - Minha mãe deu seta, ainda sem olhar para mim, concentrada demais na direção.

- O problema é que isso é uma bobagem e eu não acredito. Como eu posso falar sobre algo que eu não acredito?

- Tudo bem, não tá mais aqui quem falou. - Minha mãe finalizou a discussão comigo e foi a vez do meu irmão a ser bombardeado de perguntas.

Deixei de prestar a atenção enquanto cantarolava a música do Wesley Safadão mais uma vez. Talvez eu devesse transformar aquela música em algo relacionado a física pra ver se a matéria entrava na minha cabeça de uma vez por todas.

Não Acredito Em SignosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora