Luz das Trevas

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- Não é necessário se empanturrar, Drayton. Lembre - se disso - A mulher colocou purê de batatas, frango e um molho estranho em meu prato.
Dessa vez não repudiei a comida. Aliás, não era tão terrível assim, apesar do molho ter gosto de charope.
Comi de boca fechada procurando solver o vinho branco sem sentir necessidade de cospir tudo pra fora.
Richard terminou sua refeição, e graciosamente, limpou a boca com o guardanapo.
Nossa "Garçonete Particular", retirou os pratos e talheres na ordem correta e voltou para a cozinha.
- Temos pouco tempo, portanto agora vamos para o próximo passo - Fiz menção de me levantar, Richard ergueu a palma pedindo que eu parasse imediatamente com isso, de início não entendi mas quando ele cruzou o mesa e se colocou ao meu lado, minha mente clareou.
Ah! Me levantei pouco certa de que devia fazer realmente isso. Ele puxou a cadeira para me dar espaço, como um cavalheiro faria, e pegou minha mão, tal como um cavalheiro teria feito. Me deu aquele sorriso caloroso digno de príncipe de conto de fadas e uma parte do meu cérebro quis acreditar que aquilo não era apenas encenação, queria acreditar que Richard Laurent era um galante de verdade, que o olhar avassaladoramente quente sugerisse que nutria algum sentimento a mais por mim, uma simples plebéia com índice elevado a desastres catastróficos. Isso era tão clichê que beirava o ridículo!
- Qual seria o próximo passo? - Juntei forças para sair do transe e perguntar.
Paramos na sala.
- Podemos começar por elogios, acho que você vai se dar bem nessa - Me deu uma piscadela - Elogie a sra.Hoffer.
Franzi a testa
- Que diabo é sra. Hoffer?
Arregalou os olhos.
- Megan Hoffer! A esposa do Will!
Aaah, nossa companhia para o jantar... Sra. Hoffer, devia me lembrar desse detalhe.
- É que quando você usa o termo senhora, faz parecer que essa tal de Megan aí tem uns 80 anos! - Ele havia usado a mesma desculpa quando "acidentalmente" o chamei de senhor. Mas com ele a coisa simplesmente fluía.
Respirou fundo com impaciência.
- Ela tem no máximo trinta e dois - Esclareceu.
Não entendia isso. Não entendia mesmo.
- Então por quê o uso do pronome de tratamento?
Uma de suas sobrancelhas se elevaram de maneira divertida.
- Olha só! sabe o que é um pronome de tratamento, temos uma pequena evolução aqui - Adimirou, meio que debochando da minha cara, mas pude perceber que estava mesmo surpreso.
- O fato de eu não saber como me portar perante a sociedade moderna não significa que sou burra!
Assim como sempre fazia, ele gargalhou ao perceber que havia me irritado. Essas eram as únicas vezes que eu o via rindo, do tipo, rindo pra valer.
- Perdão, não queria ofendê - la nem nada - Queria sim - Agora, respondendo sua pergunta, os pronomes de tratamentos geralmente são usados em sinal de respeito e educação.
- Se me chamassem de sra.Draynton, me sentiria insultada! - Balancei a cabeça reprovando. Geralmente o sr.McJake usava o termo senhorita. E eu o chamava de senhor mas ele era uma autoridade sobre mim, já a tal Megan...
- Você é uma exceção, Drayton. Mas as mulheres casadas costumam ser chamadas pelo sobrenome do marido.
Por dois segundos sra.Laurent me veio a mente, tentei afastar o pensamento o mais rápido possível.
- Posso chamar seus amigos pelo nome? Sem essa formalidade toda de senhor e senhora?
Richard soltou uma risada abafada pelo nariz, mas balançou a cabeça em positivo.
- É um encontro informal, então vou te dar um desconto.
Aaah, super informal. Pra mim encontros informais acontecem em lanchonetes ou lugares do tipo, as pessoas costumam usar roupas leves, não vestidos apertados ou camisas sociais de trocentos dólares, mas tudo bem. Talvez, talvez, Richard tenha um conceito diferente sobre isso.
- Recapitulando... Faça um elogio à Megan.
Pensei por mais ou menos dois segundos.
- E esse vestido hein? Adorei! Combinou muito com seu tom de pele.
Richard apertou a ponte do nariz. Parecia estar juntando o máximo de paciência possível.
- Não, nem pense em dizer nada ao menos remotamente semelhante a isso.
Bufei contrariada.
- O que eu devia dizer então?
Um dos cantos de sua boca se repuxaram em um sorriso torto.
- Bom... Que tal, Oh! Minha nossa, sra. Hoffer, como está elegante...
Gargalhei diante de seu tom educado.
- Pode apostar que direi isso - Até parece!
Kimberlly Drayton não chamaria alguém de elegante. Isso parecia um elogio muito pobre, de longe muito falso. Eu não pertencia ao mundo de palavras ensaiadas, aaaah não mesmo.

***

Já passava das 14:30 da tarde. Richard digitava algum trabalho no notebook enquanto eu lia um exemplar de: 50 REGRAS IMPORTANTES PARA NÃO PASSAR VERGONHA EM PÚBLICO - etiqueta.
Estava na regra de número 32, minha cabeça doía graças às letras miúdas.
Fechei o livro com um suspiro cansado.
- Richard, não aguento mais! Já chega, se eu tiver que ler mais uma dessas regras...
Levantou os olhos da tela.
- Tudo bem. Já deu por hoje - Voltou a digitar - Não quero que se transforme em uma dama da alto sociedade pra sempre, isso seria um saco.
Encostei a cabeça na poltrona.
- Um saco? - Questionei.
Fechou o notebook para me encarar.
- Exatamente. - Se inclinou como se fosse me contar um segredo - Você é incrível mesmo sendo uma maluca desastrada, uma parte de mim acha tudo isso que estamos fazendo aqui hoje uma baboseira, eu não preciso de uma bonequinha. Richard Laurent não gosta de bonequinhas - Minha respiração se acelerou com o peso de seu olhar.
Esperei que ele continuasse, mas acredito que ele esperava que eu dissesse alguma coisa
- Ãh... Então por quê tudo isso?
Riu.
- Você é cheia dos Porquês - E esse fato não parecia incomodá-lo tanto, não tanto quanto antigamente.
Dei de ombros.
- Você não me respondeu.
Coçou a cabeça pensativo.
- Não sei bem, acho que o motivo é apenas causar uma boa impressão nos Hoffer...
Se eu tivesse um pouco de orgulho, iria embora e acabava com aquela farsa de namorada de aluguel, e a verdade é que eu tinha orgulho, e muito, mas creio que naquele momento ele estava tirando férias em alguma ilhazinha no caribe.
- E a sua mãe? - Pelo modo como seu queixo se enrijeceu, concluí que tinha tocado no assunto proibido. Nem pra variar.
Não entendia o motivo da aversão, se eu tivesse perdido boa parte da minha família em um acidente de carro, valorizaria os que restaram.
- O que têm ela?
- Mentiu pra ela também, que tem uma namorada?
Mordeu o lábio inferior, uma tentativa de não revelar o que estava pensando.
- Não.
Se levantou em um pulo, passando por mim, virou no corredor e bateu a porta do quarto.
Esse homem definitivamente não era muito normal, suas oscilações de humor estavam começando a me dar nos nervos, quem sabe sofresse de personalidade múltipla, ou talvez fosse apenas bipolar mesmo.
Essa era uma boa hora para ir embora, mas claro que não fiz isso, muito pelo contrário, fui direto para a cozinha. Lucinda tinha deixado tudo arrumadinho antes de tirar seu dia de folga. Peguei um pedaço de pudim na geladeira. Comida ajudava a clarear as ideias, vai ver me dava pelo menos um pingo de juízo, mas acho que surtiu efeito contrário...
Virei no corredor e marchei até a porta do quarto, a abri com tudo. Pensei que estivesse trancada por isso quando a madeira bateu contra a parede, dei um pulo pra trás e Richard também, quase deixando que a toalha escorregasse de sua cintura, seu cabelo molhado pingava, o corpo estava avermelhado, provavelmente por causa do vapor do chuveiro. E a expressão... Ele não estava nada... Nada... Nada... contente . Corei automaticamente. Ultimamente eu andava fazendo aquilo com frequência.
- Não pode bater na porta em vez de tentar arrombar?! - Me encolhi. Caramba, ele nem estava completamente pelado.
- Não tentei arrombar! Pensei que estivesse trancada!
Apertou a ponte do nariz.
- Então qual a necessidade de tentar abrir uma porta que supostamente estaria trancada? Ainda mais quando se trata do MEU QUARTO! - Berrou.
De vez em quando suas crises me lembravam uma criança de cinco anos fazendo birra pra conseguir o que quer no supermercado, mas por outro lado era eu quem fazia tudo errado.
- M-me desculpe - Gaguejei ficando ainda mais vermelha.
Sua expressão se tornou quase angustiante por um momento.
- Kimberlly - Cerrou os olhos com força, como se dizer meu nome, lhe causasse dor - Por quê está chorando?
Do que ele estava falan... Ah!
Uma lágrima deslizou por minha bochecha. Limpei rapidamente com as costas das mãos.
- Acho que são lágrimas de constrangimento - Dei um riso. nervoso. Ele não achou graça.
Colocou as mãos na cintura e... Meu Deus! Como aqueles músculos eram rijos e... Minha nossa... o que cobria a coisa não era nada mais que um pedaço de pano grosso, afugentei o pensamento.
- Você parece um animal indefeso. Me diga, eu a deixo com medo?
Notei uma nota de súplica e desespero em suas palavras.
Aquilo realmente me deixou furiosa, eu não era assim tão frágil! Se ele pensava que eu iria abaixar a cabeça e obedecer a seus caprichos, estava ridiculamente enganado.
- Não sou um animal indefeso! - Avancei um passo. Um animal indefeso não faria isso, portanto avancei mais dois - E não tenho medo de você.
Ergueu um dedo em aviso
- Fique ai - Sua voz não passou de um sussurro.
Avancei novamente até estar a sua frente e levantei a cabeça para não perder o contato visual. Pretendia encará - lo com toda a minha petulância, mostrar a ele que não tinha medo. Só não contava que ele fossem me puxar pelos cotovelos e colar o corpo ao meu, e levando em consideração seu estado atual e o fato de estarmos em um quarto com uma cama a poucos metros... Bom... Evidentemente as chances daquilo não terminar bem eram muito grandes.
- Falei pra não chegar mais perto.
Os olhos verdes queimavam, meu corpo todo entrou em combustão quando Richard me prendeu contra a parede, e ficamos tão grudados que fui capaz de sentir cada parte dele em mim, como se fôssemos um só, tão grudados quanto arroz de festa...
Sua língua desceu até meu pescoço, mordiscando a pele sensível de minha orelha, fechei os olhos com prazer, enquanto puxava seus cabelos, sua boca subiu por minha garganta, pelo meu queixo e finalmente chegou até minha boca.
Queria puxar a toalha e acabar com todas as barreiras entre nós, queria que ele me conduzisse até a cama e continuasse a me encher de beijos mornos. Mas infelizmente o efeito do pudim me atingiu em cheio, clareando minhas ideias e me dando o pingo de juízo que pedi a alguns minutos atrás. Meio atrasado e super inconveniente.
Afastei Richard de mim com um empurrão.
- Não sou sua marionette! - Não pensei muito antes de gritar as palavras - Não me trate como uma vagabunda!
Sua expressão era um misto de excitação, confusão e raiva.
- Você invadiu meu quarto! E sabe muito bem como sua presença mexe comigo - Jogou as mãos pra cima em sinal de fracasso.
Eu sabia muito bem? Nem se quer sabia que de algum modo mexia com ele, mas a forma com que me olhou, com tortura nos olhos e súplica nas palavras, fez com que meu coração acelerasse.
- Richard, a verdade, é que não sei de nada, como você mesmo disse outro dia, NADA! - Tá, eu estava mesmo parecendo uma louca, gritando e gesticulando, completamente histérica, sem muito motivo - Quando se trata de você, eu sempre estou no escuro.
Suas sobrancelhas se abaixaram em um gesto que dizia "me leve pra casa" .
- Isso é porquê eu sou a escuridão. Mas você Drayton...você é diferente... Você é luz. É o arco-íris depois da tempestade, e sei que tudo isso parece bem idiota mas estou sendo sincero com você, como nunca fui com ninguém em toda a minha vida.
Tudo bem, agora sim meu coração se descontrolara de vez, ameaçando atingir o limite, bateu mais alto que um coração devia bater, retumbante, descompassado...
Como dizia uma frase de Jane Austen " Não é o tempo nem a oportunidade que determinam a intimidade". Conhecia Richard a quase uma semana, e sentia coisas que em anos de namoro nunca senti por Nicholas. Não chamaria de amor ainda. Mas não diria que era uma mera atração.
Porque eu sabia que era muito mais que isso.








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