Memórias

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- No lo creo! - Tina exclamou. As pessoas na cafeteria já deviam estar acostumados com os seus rompantes, pois depois que passamos a fazer a "pausa para o café" pelo menos duas vezes na semana, já não atraíamos tantos olhares quanto antigamente. - Você simplesmente pediu que Richard Laurent fosse seu amigo? Tipo, amigo sem benefícios?!
- Foi isso. - Suguei o canudo sentindo o gosto de chatilly e café preencher minha boca.
- No, no, no, no, Chica. - balançou a cabeça inconformada. - Eu sei, você sabe, e possivelmente ele sabe que não é amizade o que você quer.
Levantei o dedo do meio pra ela.
- Quer que eu diga o quê? Que estou totalmente atraída por ele, que amo a forma como ele sorri e o som da sua risada e, meu Deus, ele com certeza seria um personagem escrito por uma mulher? - Suspirei enquanto ela assente positivamente. - É só atração, Tina, e é passageiro, mas as coisas com Richard foram estranhas desde o início. Agora pelo menos podemos nos sentir mais a vontade um com o outro.
- E o que você espera disso?
- Só acredito que tudo vai ser menos tenso entre nós.
Há exatos quatro dias Richard Laurent havia ido embora da minha casa depois de decidirmos deixar de lado nossas desavenças e ser amigos, e desde então não tínhamos nos encontrado mais.
Mas depois daquele dia, sempre que adentrava seu apartamento, sentia que a inquietação de encontrá-lo e não saber como me portar havia desaparecido. Também já não havia mais a pressão de arrumar tudo com a mesma meticulosidade que ele. Era uma sensação de alívio e tranquilidade.
O meu maior medo, é que de fato, quanto mais eu conhecia Richard Laurent, sua versão humana e divertida, mais gostava dele, e isso precisava parar. Precisava parar porque agora éramos amigos e eu tinha deixado claro que não existiam interesses românticos da minha parte, e também porque ele visivelmente sentia algo pela Summer, que era linda, rica e poderosa. Não menti quando disse que ficavam bem juntos, mas a dor no meu peito sempre que pensava nisso é que me incomodava. Não devia me sentir assim, precisava parar de confundir as coisas porque apesar de Richard mexer fisicamente comigo, uma parte do meu coração ainda estava quebrado por Nicholas e demoraria se reconstituir novamente.
- De toda forma - Tina começou - Acho que isso ainda vai render muita história. - Deu uma piscadela. - Trocando totalmente de assunto, como está sua irmã?
Eu havia visitado Cibelly naquela manhã, ela estava sonolenta então não me demorei muito. No hospital tive o prazer, ou não, de encontrar Nicole, minha ex cunhada, que está de passagem na cidade. Ela continua adorável e intrometida como de costume. Não desgosto da garota, longe disso, mas em alguns momentos suas interferências me irritavam profundamente, principalmente quando vinham acompanhadas por um biquinho e a frase "perdoa o Nick, só dessa vez".
- Cibelly vai ser transferida para o novo hospital amanhã a tarde. - contei. - Fica mais perto de casa, então vou conseguir passar mais tempo com ela. No geral, o que posso dizer é que o quadro dela se estabilizou, e agora precisamos pensar positivo para que continue assim.
Tina bateu palminhas.
- ¡Qué maravilla! - Exclamou juntando as mãos no peito. - Gostaria de conhecê-la.
Sorri. Porque eu tinha certeza que Cibelly amaria Tina e que as duas se tornariam ótimas amigas.
- Temos que fazer isso acontecer! - Falei com empolgação, deixando o copo de machiatto vazio no canto da mesa. - Cibby é incrível! Ela é uma versão atualizada minha.
- E é uma pirralha de muita sorte por ter você como irmã!
Tina já tinha me dito que tinha dois irmãos, Mateo e Miguel, os amores de sua vida e também a maior provação dela na Terra, foram essas palavras que usou para descrever os gêmeos de vinte e sete anos que apesar de tudo ainda ligam pra ela duas vezes por dia para saber qual cereal comprar para as filhas ou se adoçante realmente é mais prejudicial a saúde do que o açúcar. Sua família toda ainda mora na Espanha e minha amiga não para de dizer o quanto quer visitá-los no Natal, embora tenha medo que sua abuela tente seduzir Josh, como aparentemente já aconteceu antes.
- Juro por Dios - Começou a contar mais cedo. - Ela estava incontrolável. Tenho certeza que a vi morder o lábio e flertar com ele dizendo - ela fez aspas com as mãos - "Quem sabe um dia eu não te mostre alguns segredos que só os anos podem ensinar?"
Cobri a boca com a mão abafando o riso alto.
- Ela é uma figura.
- ¡Es una diabla! Isso sim. - Riu. - Meu abuelo foi um pobre coitado. Ela comia ele vivo.
A família dela parecia divertida, e as vezes me pegava pensando como seriam os feriados onde todos se reuniam. Não é algo ao qual fui acostumada, nem mesmo quando meu pai ainda vivia conosco. Não conheci meus avós, nem maternos nem paternos. Minha mãe era filha única sem contato com parentes e os irmãos do meu pai eram Irlandeses. Me lembrava vagamente apenas do tio Doug que veio nos visitar em uma Ação de Graças quando eu tinha uns seis anos. Ele veio acompanhado de uma mulher bonita que era sua esposa, e o entiado que arrancou a cabeça de todas as minhas bonecas. Fiz birra e me tranquei no quarto pelo feriado todo até que fossem embora, então não acredito que esse pequeno evento traumático conte como uma reunião familiar. Geralmente as comemorações lá em casa eram restritas para nós quatro. Papai ia ao mercado, mamãe cozinhava, Cibelly tocava teclado e eu cantava. Comíamos, conversávamos e ríamos, e depois brigávamos pra ver quem iria lavar a louça.
As vezes eu fechava os olhos e ficava imaginando que por algum milagre desenvolvi poderes e consigo voltar no tempo, para esses dias bons, onde tudo eram risos e música desafinada, e aí, volto vezes e mais vezes para aquele estágio crescente de felicidade infantil de onde jamais gostaria de ter saído.

Inverno Em Saturno Where stories live. Discover now