DIA

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O sol adentra as janelas do ônibus, produzindo sombras do entardecer. Admiro cada nuance alaranjada que surge nas paredes, nos encostos, em todo canto. As vozes dos passageiros não param, talvez quando o anoitecer chegar eles se acalmem e durmam. As cores vão sumindo aos poucos, tudo escurecendo, as luzes dos postes pelos quais passamos incomodam um pouco, mas o sono está longe ainda. Aos poucos azul e vermelho se confundem no girar dentro do veículo. Ergo um pouco o corpo já mais que acomodado no assento e vejo à frente sirenes ofuscantes. O motorista estaciona e ouço a porta abrindo, ele desce e não consigo entender muito bem a conversa. Os passageiros se empertigam em seus lugares. De repente, um corpanzil surge no início do corredor e se aproxima. Existe uma luz atrás dele que não me permite enxergá-lo direito. Eu tento, movo minha cabeça para os lados, nada. Só luz.

― Volta, meu amor.

Aquela voz, eu a conheço. Quero vê-lo.

― Não posso, já conversamos sobre isso. ― Me pego dizendo.

― Já conversamos sobre tantas coisas. Por favor, não faça isso. Não me deixe.

― Eu preciso. ― Essa voz é mesmo minha?

― Eu preciso de você.

A morena desperta, o coração disparado, e gradativamente sua visão se ajusta. Que sonho confuso! Que sensação estranha! Só podia ser Alex naquele sonho, mas ele ficaria bem, só uma brincadeira de seu inconsciente durante o sono. Preocupação tola. As luzes dos postes passam pela janela e logo tudo fica escuro, de vez em quando algum farol do outro lado em alta velocidade, mas só. Heloá fecha a cortina de pano e se encolhe sobre a poltrona, acalmando os batimentos.

Ainda levaria tempo, falta mais de dez horas de viagem à Presidente Prudente. Optara por fazer o trajeto do mesmo modo que antes, de ônibus, principalmente porque as pouco mais de quatro horas de voo não serviriam para lhe acalmar ou preparar o espírito. Loucura escolher uma viagem que dura mais de quinze horas? Talvez, porém, é do que ela precisa no momento. Pensar. Refletir.

Desde seu último encontro com Pedro, quando novamente vira Fernando, sua mente não para. Incansavelmente a incomodando com uma mistura de raiva e saudade. As lembranças em turbilhão. As faces de cada um de seus antigos amigos saltam à memória, as possíveis reações deles após sua partida, ao lerem as mensagens nos celulares. O que pensaram dela? Ainda pensam nela? Agira corretamente? Com certeza não para eles, porém havia sido sua única saída. Se continuasse em Presidente Prudente poderia ter se afundado cada vez mais e quando desse conta da profundidade do buraco, que se tornara abismo, seria tarde demais. Como será que estão? Sabrina casada com Bruno e os dois educando o bebê? Felizes? Tomara. Becka e Flávia ainda estão juntas? Tamara casada com Gabriel? E a filinha deles? Certamente é inteligente e linda. Só de imaginar as crianças, o coração de Heloá se aquece e um sorriso brinca de espectador do que possa ser. Sal realmente terminara com Valquíria? Como ele está? Com namorada nova? Ele e Vinny ainda moram juntos? Vinny... Heloá suspira ruidosamente. Certa tristeza espia por entre as frestas do que poderia ter sido. Sem perceber toca de leve os próprios lábios. Aquela recordação calorosa e ao mesmo tempo perturbadora. Dupla traição. Se pensar que traíra as próprias convicções, tripla traição. E se pensar ainda mais, que traíra sua amizade com ele, quadrupla traição. Céus! Como pôde? Como pôde permitir que se perdesse tanto?!

Lembrar da última vez em que vira Vinny dó imensamente. Não apenas pelas palavras ferinas, mas por ele mesmo. Estava tão mal! Fora a primeira vez na vida que decidira pensar mais em si que no outro, que no amigo.

Saiu de lá para se refazer e conseguiu. Hoje é uma mulher mais firme e decidida. Conquistou tudo o que quis no Rio de Janeiro, até a tão sonhada promoção que tantos diziam que jamais aconteceria. Ela provou ser capaz. E uma nova oportunidade aparecera, mas para aceitar a condição é desaparecer. Nem Alex soube da tal proposta recebida num fim de tarde, quando GG, ou melhor, Marconi, sim, revelara seu verdadeiro nome a ela, o que provava ser real e sério o convite dele, apareceu no apartamento e a notificou do interesse quanto a seu trabalho na equipe dele. O líder dos Fantasmas não exigiu uma resposta imediata, do contrário ela teria dito sim. Estava confusa com o término da OCB, com tudo o que lhe aconteceu. A terapia e as noites em claro lhe ajudaram a refletir melhor. Antes de qualquer decisão: É tempo de encarar o que deixou para trás.

Dual_2Where stories live. Discover now