Fantasmas!

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Eu ri de medo, além da enorme raiva por causa do absurdo da situação! Quatro dias atrás, dois fantasmas, que estavam próximos à janela do quarto, discutiam questões sobre terras

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Eu ri de medo, além da enorme raiva por causa do absurdo da situação! Quatro dias atrás, dois fantasmas, que estavam próximos à janela do quarto, discutiam questões sobre terras.

Eu não gosto de fantasmas! Eles são aterrorizantes, uma imitação carcomida daquilo que eram em vida! Dá até vontade de vomitar por causa do cheiro que exalam e do frio que transmitem! Ouvir suas vozes é assustador! Além disso, eles são a certeza, às claras, do que o destino nos reserva em breve tempo!

Em certo momento, eles enfiaram a cabeça pela janela do quarto, uma sobre a outra, dizendo que eu era "o anjo" certo para ajudá-los...

- Quer ajudar porra. nenhuma! – Eu xinguei.

Eles foram enfáticos em suplicar minha ajuda, o que só piorava o desconforto. Por fim, estourei:

- Procura um advogado que esteja morto, cacete! E não voltem mais, p...!

Quando estou com medo, e cansado dessas situações estranhas, eu me escondo no único lugar seguro que conheço: debaixo dos lençóis da cama do meu filho. Ele tem dois anos. Mônica, ao perceber o meu dilema, logo se aconchega ao meu lado. Não foi à toa que compramos uma cama bem larga, só para que tivéssemos essa ilha de segurança nas horas de desespero. Ali o 'derredor' fica em silêncio. No quarto do meu filho não há monstros escondidos no armário, nem debaixo da cama.

No outro dia, entretanto, os dois fantasmas apareceram de novo. Xinguei todos os palavrões a que tinha direito quando eles me impedirem de entrar em casa após um dia tenso na Polícia Federal! Eles nem respeitavam isso!

Caralho! Foi o que eu lhes disse quando me cercaram vindos do nada, incomodando meus ouvidos e os demais sentidos com sua presença ameaçadora, com a conversa do problema das terras, que a família estava em conflito por causa do limite entre as fazendas, que eu poderia ajudá-los!

- Ah, sim! -­ Eu os agredi, com um tom de voz nada cordial, querendo entrar em casa - Vou lá agora! Levo até uma régua de plástico para medir as terras e resolver a situação!

Eles me cercaram! Há como explicar a sensação de fantasmas te impedirem de andar? Um deles disse que a solução para o problema estava em um documento que selava um acordo entre eles dois, de que a 'cerca', na verdade um muro, nunca fosse reconstruído, embora desrespeitasse o limite entre as duas fazendas. Que eles, enquanto estavam vivos, não brigavam por causa disso! Que era uma pena a família manter-se em 'pé de guerra' por coisa tão boba:

"Vaca é bicho solto! Não sabe ler, quanto mais entender o que é propriedade de terras"!

"O gado é marcado! Dá para saber qual boi é de quem, mesmo se todos os bois e as vacas resolvam entrar fazenda contrária adentro"!

Aquele, o mais alto deles, completou, a voz de sussurro cavernoso:

- Muitas vezes eu levei vaca fujona de volta para ele, que também trazia boi ou bezerro de volta. Depois nós tomávamos cachaça perto da fogueira, contando causos de fantasmas, ouvindo viola chorosa... E agora essa confusão toda?

- Por isso a gente está aqui! - Disse o outro. - Você também é advogado, né?

- Sou um servidor público! - Gritei, horrorizado. Eles me tratavam com tanta intimidade que eu parecia estar morto também! - Trabalho com vínculo de dedicação exclusiva! Não posso advogar causas! E nem quero! Dá trabalho, traz problemas demais e mortos em excesso, pelo visto!

- Mas você é um anjo! Só pode ser um anjo com essa 'luzona' toda saindo das costas qual poeira do céu! A gente viu elas lá de Minas Gerais!

- O documento selando o nosso acordo está na terceira gaveta do armário da sala da minha fazenda! – Disse o mais alto deles, chamado de Germano pelo outro.

- A gente queria que você desse um jeito! – Disse, então, o Oswaldo.

Soltei uma série de palavrões e tentei sair de perto. Eles ficaram perplexos, me cercaram, chamando a minha atenção por causa da boca suja!

- Mas que cacete! - Exclamei. - Eu não tenho como viajar para Minas Gerais! Também não posso chegar lá, mencionando um documento sobre uma cerca estragada ou o diabo que seja! Eles vão dizer que eu sou doido! Aliás, olha a certeza disso agora! Eu estou conversando com dois mortos! Mais provável que eles me enxotem à tiros!

- Isso não vai acontecer! - Um deles exclamou: - Eles foram criados ouvindo casos de fantasmas! Diga que nós te procuramos para pedir que deixem as coisas como estão! Que quanto mais concertarem a cerca mais problemas virão! Os bois gostam de atravessar o riacho, e ficam enfiando os chifres ou a testa para derrubar tudo! Além disso, consertar o muro vai ficar muito caro, e o pior: matar um bicho para construir um muro, ao contrário de alimentar gente? Não pode! Eles estão subvertendo a ordem da natureza com tanta falta de juízo! Daqui a pouco vai ter morte por lá!

Ordem da natureza? Juízo? E o meu equilíbrio e o meu juízo? Não contava? Eu fiquei olhando aqueles dois sem saber o que fazer ou dizer. Então, eu lhes perguntei se ainda sabiam o número do telefone das fazendas! Ou fantasmas se esquecem dessas coisas? Minutos depois eu falei com uma moça da cidade de Itanhandu em Minas Gerais, bastante equilibrada por sinal:

- Eu só não vou mandar o senhor para a puta que te pariu, pois de loucura já basta o que está acontecendo aqui em casa! E o senhor mora longe demais, certo? Como soube do caso?

Foi por um triz eu lhe-ter contado.

Os dois fantasmas ficaram arrasados, eles colocaram os braços no ombro um do outro, chorando e se lamentando como se o mundo fosse acabar.

- Vai lá assombrar as fazendas, ora! – Eu sugeri. - Toca lá 'a maior barata' voa! Juro que as famílias vão procurar a ajuda de um pai de santo que fale com fantasmas!

Os dois riram tão assustadoramente que eu me arrependi de lhes ter dado o conselho. No outro dia eu ouvi a conversaria do lado de fora do quarto, na lateral da casa onde há o quintal! Os dois fazendeiros mortos estavam lá! Queriam agradecer a ajuda! A filha, com quem eu havia falado, depois de soltar diversos palavrões dirigidos a minha pessoa, mas com a pulga atrás da orelha, encontrou o bendito documento.

Aquele rico documento, aliás... além de tudo o que advogava em relação as duas fazendas, também protegia o buraco no muro onde o gado passava (tal qual a moda de viola escrita e tocada pelo amigo violeiro, dono da fazenda vizinha), e selava a profunda amizade entre os dois homens, ao proibir as famílias de entrarem em litígio por causa das propriedades, as quais, pelo menos para os dois, eram uma só, e isso bastava para impedir as famílias de brigarem pelas terras e pelo gado.

A ligação fraterna entre os dois senhores, como eu podia ver com minha vidência de anjo, vinha de reencarnações que se perdiam no passado, e continuaria assim infinitas vezes no futuro! Eles até costumavam nascer em lugares próximos, morrendo quase no mesmo dia, só para facilitar a reencarnação conjunta.

E os dois se foram; eles riam e contavam coisas que só a eles cabiam. Falavam em voz alta e combinavam de ir até uma mulher grávida de gêmeos, lá por Minhas Gerais. A senhora morava perto das fazendas e eles poderiam nascer juntos de novo! Após ouvir tal disparate, eu quis o quarto do meu filho e a segurança das cobertas. Eu não via nenhuma beleza em um caso tão bizarro. Imagina: Dois senhores, com mais de setenta anos, apoderarem do cordão fluídico das duas crianças só para nascerem juntos? E do modo como eles falavam! Pobre daquela senhora e dos dois espíritos escolhidos para a reencarnação! 

Cotidiano de um AnjoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora