Padre Antônio VI

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No caminho de volta a Santana, Antônio e Klauss cavalgaram lado a lado noite adentro sob a lua cheia. A claridade revelou outras características que o padre ainda não havia percebido sobre sua estranha companhia de viagem. Klauss tinha os lóbulos das orelhas rasgados, como se brincos tivessem sido arrancados dos furos. Os desenhos no seu tórax se estendiam pelo pescoço e pelas costas das mãos. O padre notou que Klauss não usava um anel da ordem.

- Eu acho que isso te pertence. - Disse Antônio, estendendo o anel.

Klauss olhou para a mão do padre.

- Isso não é meu, não. - Disse Klauss.

- Bem, você disse que é a Ordem dos Peregrinos.

- O anel pertence a cada peregrino. Você pode devolvê-lo quando encontrarmos o seu verdadeiro dono.

- Você acha que ela está viva?

- Ela?

- O dedo me pareceu ser de mulher. Não sei.

- Fale-me sobre os moradores dessa casa.

- Um casal e dois filhos.

- E um belo dia você foi até a casa e eles tinham desaparecido, deixando um dedo e um anel?

- Bem, não exatamente. O filho me pediu ajuda. Disse que o irmão tinha visões sobre o futuro. Quando eu cheguei na casa, os pais estavam congelados, imóveis. As crianças estavam numa espécie de transe.

- E o irmão vidente?

- Ele estava coberto por um lençol. Tudo muito estranho.

O homem balançou a cabeça.

- O que você sabe sobre sacis?

- Que eles pulam em uma perna só, gostam de fazer travessuras e fumar cachimbo.

Klauss sorriu.

- Vai ser uma noite divertida.

A dupla chegou à casa de João perto da meia noite.

Apearam seus cavalos e se aproximaram da porta. Klauss ergueu a cabeça como se farejasse algo.

- Vem, rápido. - Disse Klauss, puxando o padre pelo braço para dentro da casa. Abrindo um dos compartimentos do seu cinto, Klauss pegou um punhado de um pó branco e traçou uma reta debaixo do batente da porta.

O padre olhou os desenhos no corpo de Klauss adquirirem um certo brilho, como se fossem luminescentes.

- Divertido, não? - Sorriu Klauss, notando o próprio brilho refletido nos olhos do padre.

Pedro estava parado na porta da casa. Sua aparição repentina chocou Antônio. Klauss apertou seu ombro.

- Bem-vindo à aula introdutória de caça a sacis. - Murmurou Klauss.

- Este é o menino que pediu minha ajuda.

- Não é, não. Discretamente, coloque o anel no seu dedo.

Antônio começou a sacudir a mão dentro do bolso. Klauss apertou seu ombro.

- Discretamente, eu disse.

Pedro continuava parado na porta atrás da marca de pó, observando os dois dentro da casa com uma expressão vazia.

Depois de algumas tentativas frustradas, Antônio conseguiu colocar o anel no mindinho. Assim que a joia passou da primeira falange, ele sentiu um formigar, uma eletricidade correr seu corpo, a partir do seu dedo. A sensação culminou num arrepio. Quando o padre abriu os olhos, Pedro não estava mais à porta. No seu lugar, uma criatura observava a dupla. Sua pele negra como piche esticada sobre músculos grandes como um cavalo de raça. Uma cabeça desproporcionalmente pequena, cabelos ruivos incandescentes que balançavam como labaredas. Olhos leitosos e uma boca repleta de dentes pontiagudos fumegava baforadas brancas. O que corresponderia a braços tinha músculos e envergadura descomunais e terminavam em garras de três dedos. O que corresponderia ao tronco do humanoide afunilava-se até se transformar em uma única perna frondosa, sustentada por uma imensa pata, como a de um gorila.

- Não grite. - Murmurou Klauss

Antônio gritou a plenos pulmões e caiu para trás, aterrorizado. A criatura gritou de volta um urro que era ao mesmo tempo gutural e estridente, mistura de arara com búfalo, fumaça saindo das ventas e enchendo o ar.

O monstro avançou contra o padre. Uma explosão de luz empurrou a fera para trás. A marca de sal grosso que Klauss desenhara na porta impediu o ataque. O monstro bateu as garras sobre o peito como um primata e fugiu, os membros superiores trabalhando em conjunto com o inferior, da mesma forma como fazem os símios.

- Eu falei para não gritar - disse Klauss, esfregando as têmporas.

- O que... aquilo... que... - Antônio não conseguia concatenar as palavras.

- Sim. Padre, saci. Saci, padre - Klauss caçoou, estendendo a mão para levantar Antônio do chão.

- Sacis são metamorfos. Sem o anel, eles podem se parecer com qualquer um.

- Mas, mas... você não tem um!

- Eu preferi uma solução mais permanente. Foi doloroso mas, você sabe. Vão-se os dedos, fica o feitiço de detecção de sacis - disse Klauss, arregaçando a manga da camisa e monstrando os desenhos de suas cicatrizes geométricas brilhando no escuro do quarto.

- O que é aquele pó? Na porta?

- Sal grosso. Eficaz para mau olhado, sacis e churrasco. - Respondeu Klauss, puxando uma pequena flecha e colocando sobre a balestra.

- Então nós estamos seguros aqui dentro?

- Sim. Eles não podem entrar aqui. Vamos? - Disse Klauss, indicando a saída.

- Para onde?

- Lá para fora. Na melhor das hipóteses, temos um saci para caçar.

- E na pior?

- Temos mais de um saci para caçar. - Disse Klauss, tomando a dianteira e desfazendo a marca de sal grosso do chão com a ponta da bota. 

Padre Antônio é o sétimo e último personagem de Guerreiros de Vera Crux, uma fascinante visão do Brasil num universo de fantasia. A cada dia, um novo capítulo desta saga chegará até você. Para não perder nenhum episódio, siga nossa página, dê uma estrelinha e conte o que você mais gostou (ou não) e como podemos fazer sua leitura ainda melhor. O time da Toska Literatura quer conversar com você! ;) 

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