Thriondel

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O vento balançava o teto frágil da tenda de mantimentos. Thriondel terminou o inventário e suspirou. Não havia farinha, charque ou sal suficiente. A cada dia a situação ficava mais desafiadora. Nas assembléias de Doriath, os elfos já começavam a reclamar da escassez e do racionamento. As porções cada vez menores, o fantasma da fome. Não ajudava saber que os elfos negros, responsáveis pela vigília e proteção da aldeia, receberem porções consideravelmente maiores de alimento.

Não que as pessoas não reconhecessem a necessidade de manter bem alimentada a única defesa da tribo contra a ameaça pandoriana. Ser um elfo negro tinha suas vantagens, mas também era incrivelmente arriscado. Não raro, a troca de turno revelava mais uma baixa na madrugada.

Thriondel mantinha uma saudável inveja dos elfos negros, quase invisíveis nas copas das árvores, capazes de flechadas cirurgicamente precisas. Eram os verdadeiros heróis. Claro, todos os elfos eram heróis, sobreviventes. Nebriniel, por exemplo, parecia viver da própria coragem, as marcas da violência do inimigo carregadas na face, como uma dolorosa medalha. Não era por acaso que Nebriniel se tornara Rainha de Doriath, senhora de elfos alvos e negros. Não era apenas uma questão consanguínea. Havia respeito e deferência na sua trajetória até o trono.

Não que Thriondel não se orgulhasse de seu papel na aldeia. Seus irmãos, alvos ou negros, precisam comer. E seu papel era fazer dessas refeições mais do que uma mera questão de nutrição: era uma oportunidade de fomentar o senso de comunidade. Uma celebração dos pequenos prazeres da vida em uma nação lutando para se reerguer das próprias cinzas. Thriondel sabia disso tudo e se orgulhava, sim, de ser cozinheiro. Mas uma parte dele gostaria de algum tipo de reconhecimento eventual.

Terminado o inventário, Thriondel dirigiu-se até a fogueira no centro da cozinha. Distraído, esbarrou em Elmer, sempre uma experiência desagradável.

- Pressa, Jaboticaba? - Sorriu Elmer, do alto de seus arrogantes dentes perfeitos.

Thriondel odiava aquele apelido. Talvez por isso Elmer não perdia a oportunidade de utilizá-lo. Foi há três anos, na primeira vez que Thriondel participara das festividades da batalha de Doriath.

A celebração da expulsão das forças de Ouro Negro do território élfico era a única data comemorativa de Doriath renascida. Três dias e três noites de excessos em todos os sentidos. Comida farta oferecida pela Rainha e devassidão sexual justificada pela necessidade da proliferação da raça. A nova tradição ofertava prêmios em ouro para os melhores pratos, numa tentativa de fomentar a cultura local. Thriondel inspirou-se nos pequenos frutos negros que cobriam algumas árvores da região.

No entanto, o sabor travoso do fruto desagradou profundamente a banca examinadora. Thriondel pensou que havia colocado suficiente mel para contrapor a acidez da jaboticaba. Ao ver os jurados cuspindo sua criação, notou que estava errado. Durante um tempo, o rapaz considerou a hipótese de que Elmer havia sabotado sua receita. Uma suspeita que sempre vinha à tona quando ouvia o famigerado apelido. Mas Thriondel não era de guardar rancores.

- Alguma novidade sobre os mantimentos? - Desconversou Thriondel.

- A mesma de sempre: cada vez menos material para se trabalhar. Como está sua contagem?

- Tem pra mais dois, três dias. No máximo - respondeu Thriondel, encolhendo os ombros.

- Acha que ela vai cancelar o festival?

- Não é o perfil dela.

- Aceitar a realidade?

- Desistir.

Thriondel tinha razão. Para a Rainha Nebriniel, o festival não era apenas uma questão de honra. Era também uma questão de sobrevivência. Um povo sem tradição, sem cultura, sem laços emocionais com seus semelhantes e sua terra, não era um povo, apenas pessoas vivendo no mesmo local. Um povo sobrevive a guerra, fome, perseguição. Pessoas simplesmente se mudam, procurando pertencimento num lugar menos cruel. Apesar de não haver uma declaração explícita da Rainha, Thriondel sabia que Nebriniel tinha consciência da importância de seu trabalho no renascimento de Doriath. E isso, para o jovem cozinheiro, era motivo de orgulho.

- Claro, Jaboticaba. De qualquer maneira, qual vai ser o fiasco deste ano?

Coincidência ou não, desde que Elmer passou a fazer parte da equipe de cozinheiros de Doriath, Thriondel experimentava uma maré de azar nos concursos do festival. Depois do incidente com a torta de jaboticaba, houve uma inexplicável mistura de sal e açúcar. No ano passado, as corvinas frescas que seriam utilizadas na sua torta salgada misteriosamente fugiram das gaiolas e o pobre Jaboticaba foi desclassificado por não ter um prato para apresentar.

Claro, não era do feitio de Jaboticaba acusar alguém sem provas. Mas cautela e prudência eram sempre lições oportunas a serem extraídas da adversidade.

- Não sei se vou participar. - Thriondel mentiu mal.

- Bobagem. Claro que vai. Você só precisa ser... criativo. Quer minha ajuda? Eu não gosto de ajudar a concorrência. Mas como você está longe de poder ser considerado concorrência, eu ajudo você! - Disse Elmer, rindo e batendo sua colher de metal no ombro do Jaboticaba.

Thriondel esfregou a pele ardida pelo impacto do metal e olhou para Elmer. Era hora de tirar aquela sombra do seu pé.

- Tudo bem, tudo bem. Vou te contar: vou fazer um prato em homenagem à Rainha liderando nosso povo na batalha.

- Essa não. Você não vai fazer outro bolo de frutinhas que você achou numa moita qualquer, vai? - Ironizou Elmer.

- Não. Eu vou fazer um guisado de lobisomem.

A colher de Elmer caiu no chão. 

Thriondel é o quarto personagem de Guerreiros de Vera Crux, uma fascinante visão do Brasil num universo de fantasia. A cada dia, um novo capítulo desta saga chegará até você. Para não perder nenhum episódio, siga nossa página, dê uma estrelinha e conte o que você mais gostou (ou não) e como podemos fazer sua leitura ainda melhor. O time da Toska Literatura quer conversar com você! ;)

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