Kenji I

4 0 0
                                    


Kenji tinha medo do vento. Por mais que ele se esmerasse em calcular os arcos dos projéteis, o vento era sempre o imponderável. Um inimigo invisível, uma força a temer. Seu avô, o pescador Yuudai Massaro meneava a cabeça diante da impaciência do neto. As mãos enrugadas do pescador tomaram o tridente do punho trêmulo do aprendiz. O rosto marcado de sol, a pelugem branca, lisa e longa de que descia das margens de sua boca e balançava no ritmo da jangada. Acima de tudo, o olhar de reprovação.

- A natureza não liga para sua pressa, menino. - Disse Massaro.

Kenji baixou os olhos, mas ele nem sabia exatamente o porquê. O velho nem havia terminado a reprimenda e Kenji já estava encarando o continente de novo. Massaro acertou o rosto do garoto com as costas da mão. A dor despertou Kenji como um choque.

Não que Kenji nutrisse algum tipo de desprezo pelo avô. Pelo contrário, havia um sentimento de gratidão. Não fosse por Massaro, Kenji estaria entregue à própria sorte. Não existia muito futuro para os órfãos de Okinawa. Na sua jangada de bambu, Massaro alimentou duas gerações, incluindo o famoso Takumi Massaro. Quando a mãe do garoto - quem quer que ela fosse - o deixou numa cesta na porta da casa de Takumi, o guerreiro decidiu que não havia lugar para um bebê em sua vida. Coube ao velho Massaro cuidar daquele neto temporão e inesperado. Yuudai o criou da maneira que sabia. Letras, pesca, honra. Eis o homem.

Para o velho Massaro, pescar era um acordo de cavalheiros. A natureza é mais forte que o homem, que é mais forte que o peixe. Aos olhos da natureza, peixe e homem são iguais, seus filhos. E um filho não pode matar o outro sem permissão. Para o velho, a natureza concedia este aval pelo vento. Nos dias de calmaria, a mãe natureza autorizava a pesca. Dias de ventania e tempestade ensinavam humildade e contrição aos humanos. O tridente, instrumento de pesca da família, era a expressão máxima deste equilíbrio natural. Nos dias de pesca, o tridente viajava certeiro até o pescado. A medida em que o vento aumentava, apenas os pescadores mais experientes recebiam as bênçãos da natureza. Pelo jeito, a mãe natureza pretendia que Kenji morresse de fome.

- Essa raiva não vai levar seu tridente longe. Tem que ouvir o vento, entender o que ele diz. Você não controla o vento. Entende. Obedece. - Disse o velho, simulando o lançamento do tridente sobre a cabeça e repassando o instrumento para Kenji.

O garoto levantou o tridente.

-Calma. - Falou Massaro, levantando a mão.

Kenji respirou fundo e sentiu a brisa úmida no rosto.

-Sente o vento. Escuta. - Sussurrou o velho pescador.

Kenji avistou o dorso de um peixe e arremessou o tridente com um urro.

- Não! - Gritou Massaro.

O instrumento mergulhou na água, sem jeito. Contrariado, Massaro puxou a corda que prendia o tridente à jangada.

- Eu vi um peixe! - Justificou-se Kenji.

- Estamos num rio! Peixes moram aqui. - Resmungou Massaro - E daí que você viu? Dá um tchauzinho para ele, agora. Sem almoço para você.

- Deixa eu tentar mais uma vez, vô! - Implorou Kenji, pressentindo mais um dia de fome, um inconveniente frequente na sua carreira de aprendiz de pescador.

- Você não pode forçar a natureza a fazer o que você quiser. Ela é muito maior. Hoje você não ouviu. Quem não ouve, não come. - Respondeu o pescador, mergulhando o remo na água.

Apesar da doutrina severa, o rapaz não se ressentia do avô. O velho fazia o possível com o que a vida havia lhe oferecido. Kenji se perguntava se seria capaz de reconhecer seu pai, caso cruzasse com ele num acaso do destino. Gostava de fabular justificativas compreensíveis para aquele abandono. Simulava aceitar pedidos de perdão. Imaginava se eram dele os olhos que via em seus sonhos.

Naquela noite, Kenji não conseguiu dormir. Parte era o cheiro de peixe assado que Massaro pescara, mas insistia em não dividir por princípio pedagógico. Outra parte era a sensação de impotência. A sensação de não ter qualquer controle sobre o próprio destino. Porque sua mãe o abandonara, agora ele devia se conformar em ser pescador. Conformar-se com os caprichos desta outra mãe. Quando finalmente caiu no sono, Kenji foi assombrado por estranhas imagens. Olhos de serpente, sorriso de cobra, uma mão de mulher estendida em convite. O aroma de sândalo dominava o ar.

Uma caravana de artistas e videntes chegou a Okinawa e ergueu suas tendas circenses a alguns quilômetros da aldeia. Os malabaristas, as aberrações, os mágicos. Para Kenji, tudo parecia um obsceno exercício de liberdade.

Uma das tendas abrigava uma arena de luta, com prêmios em dinheiro para quem aguentasse dois minutos contra Golias, um ocidental enorme com braços da largura de árvores.

O bilheteiro riu quando Kenji se candidatou. Mas o dinheiro do franzino era tão bom quanto qualquer outro. Além do mais, Golias era experiente e saberia encerrá-lo de forma rápida e segura.

Apenas homens adultos podiam assistir às lutas, o que limitava a audiência daquela atração mambembe. Mais espaços vazios do que espectadores prestigiavam Golias quando Kenji foi apresentado por um apresentador que não fazia o esforço de levar o desafiante a sério.

A sineta tocou e os dois lutadores entraram na arena. Kenji era descontrole puro, pulando de um lado para outro. Golias parecia um pouco insultado pela presença do garoto, mas não estava disposto a matar no primeiro dia na cidade. Com dois passos largos e decididos na direção de Kenji, Golias fez o garoto recuar em pânico e sair da área de combate. Sem tocar no adversário, o gigante derrotou o desafiante. A plateia esparsa riu e aplaudiu ironicamente. Golias não se deu ao trabalho de cumprimentar Kenji. Levantou seu cinturão surrado, o colocou sobre o ombro esquerdo e saiu de cena. Kenji, sentado na serragem ao lado do ringue, estava extasiado.

- Levante, guerreiro. Sua luta está só começando. - Uma voz sussurrada tirou Kenji do seu estado de torpor.

O jovem se levantou, zonzo. A tenda já estava vazia. Um perfume de sândalo no ar.

Kenji se revirava na cama, repassando tudo o que acontecera nos seus parcos segundos de arena. No começo, era tudo um borrão em sua memória. Aos poucos, ele se lembrou de como tremia. Lembrou-se dos passos do gigante. Lembrou-se dos próprios joelhos trêmulos. E chegou à conclusão que havia muito naquele embate que poderia ter sido diferente, caso ele tivesse mais controle. A começar pelo próprio corpo. Lembrou-se do perfume de sândalo.

Entre uma ou outra pescaria, Kenji se dedicava ao estudo de artes marciais. Da próxima vez que encontrou-se frente a frente com Golias, Kenji não recuou. Pelo contrário, esquivou-se das passadas estratégicas que o levaram para fora do ringue no primeiro embate. Golias ainda não tinha se dado ao trabalho de erguer a guarda. Kenji encaixou um chute em suas costelas. Golias reagiu como se um grilo tivesse pousado em sua sopa. O gancho de esquerda fez Kenji decolar e aterrissar, ensanguentado e desacordado, sob a serragem do lado de fora do ringue. A experiência o levou a pesquisar botânica e os segredos das ervas que proporcionam maior tolerância à dor.

Massaro não recebeu qualquer explicação para o rosto cheio de hematomas e os dentes faltando de Kenji. Também não perguntou. Até porque, seja lá o que se passava na vida do neto, estava dando certo. Seu aprendiz estava mais calmo. Mais centrado. Seu tridente estava certeiro como nunca. Seu braço não tremia. Não havia afobação em seus movimentos. Em parte porque as poções analgésicas que Kenji consumia faziam o tempo andar mais lentamente. E também porque não se tratava mais de pegar peixe. O equilíbrio na jangada treinava suas pernas. O peso do tridente adestrava seus ombros. Tudo era um treino, uma meditação em busca de um objetivo maior que a próxima refeição. O próprio tridente era agora um instrumento mais próximo. Na ausência de katanas ou bastões de treinamento, Kenji incorporara seu acessório de pesca nos seus treinamentos bélicos, resistente o bastante para sustentar o seu peso e ainda leve o bastante para ser uma arma branca eficaz.

Na noite em que Kenji decidiu que estava pronto para um novo embate com Golias, o jovem encontrou um terreno vazio onde o acampamento se encontrava. As marcas das carroças no chão lamacento indicavam norte. 

Kenji é o quinto personagem de Guerreiros de Vera Crux, uma fascinante visão do Brasil num universo de fantasia. A cada dia, um novo capítulo desta saga chegará até você. Para não perder nenhum episódio, siga nossa página, dê uma estrelinha e conte o que você mais gostou (ou não) e como podemos fazer sua leitura ainda melhor. O time da Toska Literatura quer conversar com você! ;)

Guerreiros de Vera CruxWhere stories live. Discover now