Thriondel V

1 0 0
                                    


Quando Thriondel acordou, sua cabeça latejava. Ele tentou tocar a têmpora dolorida, mas suas mãos não se moviam. Ele estava amarrado numa cadeira no fundo da despensa. Pensou em gritar por socorro, mas sua boca estava amordaçada por um avental enrolado. Thriondel se debateu, mas os nós de Elmer eram firmes. Força não seria a solução. Jaboticaba precisava pensar.

Olhando ao redor, Thriondel procurava analisar sua situação para traçar estratégias de escape. A julgar pela falta de iluminação, já era noite. Uma sutil cacofonia de vozes, risos e música vibrava pelas paredes da despensa. O festival já havia começado. Talvez Elmer já tivesse servido o guisado. Talvez não.

Thriondel tentou olhar para o teto e bateu a cabeça contra uma superfície dura atrás dele. O impacto fez sua têmpora latejar. Ele notou que estava amarrado a uma viga. Recordando a disposição dos móveis na despensa, isso significava que ele estava atrás de uma estante de acessórios de cozinha. Se ele fosse capaz de esticar os pés, talvez pudesse balançar a estante e derrubar algo afiado. Tentou primeiro com o pé direito. Nada. O pé esquerdo conseguiu tocar algo. Uma superfície. Thriondel usou o dedão para tentar deslocar a tal superfície e ela cedeu, ligeiramente. Quando o cozinheiro recolheu o dedo, a superfície voltou à sua posição original.

Thriondel repetiu o processo com o mesmo resultado. Depois o fez de novo, com um pouco mais de força. E outra vez. A cada empurrão com o dedão, Thriondel aplicava mais força, e a superfície voltava com mais peso e inclinação. Até que ela se inclinou sobre o dedão e não voltou à posição original.

Toda a estante veio para cima do cozinheiro, soterrando-o em vasilhas, panelas, escumadeiras e facas. Muitas facas. Algumas acabaram fincando suas pontas na pele de Thriondel, que gemeu abafado em sua mordaça. Mas uma delas caiu suficientemente próxima de suas mãos. Thriondel se pôs a serrar as cordas que o prendiam.

Mancando, sangrando e sem fôlego, Thriondel chegou ao banquete de abertura. Todos os elfos sentavam num grande semi-círculo. Ao centro, Nebriniel, cercada de seus conselheiros, fazia um brinde a mais um ano de resistência e reconstrução em Doriath. Seu rosto parcialmente desfigurado era uma nota dissonante numa noite de alegria e celebração. Nebriniel vestia uma armadura preta de combate, o único traje em que a Rainha era vista publicamente. Um tapa-olho da mesma cor sobre a metade do seu rosto coberta por cicatrizes. Nebriniel não possuía mais a cartilagem do nariz. Seu aspecto era fantasmagórico, pálido e assustador e era uma lembrança constante das dores da guerra aos sobreviventes de Doriath. Os não mais que cem elfos da aldeia aplaudiram emocionados o seu discurso.

Pela única abertura no círculo, Elmer entrou carregando uma sopeira dourada. Provavelmente a porção do guisado destinada à Rainha. Mesmo à distância e sob a luz de tochas, Thriondel podia notar que havia algo de errado com Elmer. Ele parecia bêbado, trôpego. Talvez até doente.

A possibilidade de que o guisado tivesse lhe provocado algum tipo de desarranjo intestinal apavorou Thriondel. Mas ele não esperava pelo que aconteceria a seguir.

O vento noturno soprou as nuvens do céu e expôs a lua cheia sobre Doriath. Elmer reagiu como se uma bomba incendiária tivesse explodido em suas costas. A sopeira dourada foi ao chão, esparramando todo o seu conteúdo. Elmer gritava e seu grito foi ficando cada vez mais grave, até virar um uivo.

Um ancião apontou aos berros: "Lobisomem!" e a boca de Elmer virou do avesso, revelando um longo focinho com fileiras de dentes pontiagudos.

Em estado de choque, Thriondel viu Elmer eclodir como uma rosa de carne e um enorme monstro surgir das suas entranhas.

As flechas dos arqueiros já caiam sobre Elmer quando sua transformação se completou. Mas o pandoriano estava ocupado com Nebriniel. A Rainha de Doriath havia saltado sobre a mesa com sua espada em mãos pronta para enfrentar o monstro.

Elmer esquivou-se do primeiro golpe, mas Nebriniel era ágil. O terceiro, quatro e quinto ataques foram desferidos no mesmo fôlego, abrindo uma sequência de rasgos fundos na recém-adquirida pele do pandoriano. O quinto golpe real decepou dois dedos da pata direita do pandoriano.

O lobisomem rosnou e espumou e tentou acertar a Rainha com uma combinação de garras e presas, mas só encontrava o ar depois das fintas rápidas da Rainha.

Entre as flechas que continuavam a pousar certeiras em seu dorso e a lâmina afiada de Nebriniel, o instinto de sobrevivência falou mais alto em Elmer e o lobisomem deu um longo salto rumo à floresta, que se localizava alguns metros atrás de onde Thriondel assistia a tudo.

Correndo a toda velocidade, Elmer viu o rosto apavorado do Jabuticaba no seu caminho. E alguma faísca de consciência surgiu nos seus olhos. Elmer e Thriondel se encararam e se reconheceram e Jaboticaba esperou pelo pior.

Mas o lobisomem saltou sobre o cozinheiro, como se ele não fosse mais que uma cerca, um obstáculo, um objeto inanimado.

Enquanto Elmer sumia floresta adentro, Thriondel se limitou a sair do caminho da Rainha e sua guarda na caça pelo inédito elfo-licantropo.

Thriondel jamais compreendeu porque sua vida fora poupada pela fera. Talvez sua imobilidade fizera dele um alvo irreconhecível para o lobisomem. Talvez o que restara de sanidade em Elmer tivesse reconhecido Jaboticaba. De qualquer forma, Elmer jamais foi capturado ou visto e, até onde era sabido, ele fora o único que provara a sopa.

A corte de Doriath ouviu o testemunho de Thriondel. Novas normas foram criadas, proibindo o consumo de carne de qualquer tipo de pandoriano, em qualquer hipótese.

Mas aquela não seria a última vez que os preparativos de Thriondel para o festival seriam interrompidos por uma tragédia. 


Thriondel é o quarto personagem de Guerreiros de Vera Crux, uma fascinante visão do Brasil num universo de fantasia. A cada dia, um novo capítulo desta saga chegará até você. Para não perder nenhum episódio, siga nossa página, dê uma estrelinha e conte o que você mais gostou (ou não) e como podemos fazer sua leitura ainda melhor. O time da Toska Literatura quer conversar com você! ;)

Guerreiros de Vera CruxWhere stories live. Discover now