Prólogo

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(Um dia antes)

Havia algo no modo como Lua Cheia me olhava. Sentada ao meu lado no jardim, ela permanecia em silêncio, apertando os dedos das mãos com ansiedade. Era fim de tarde, o sol se escondia, tímido e temeroso, atrás das nuvens cinzentas, quase num tipo de desafio. Lua deixou de me encarar por um momento, apenas para olhar para aquelas nuvens intrigantes mais um pouco. Eram enormes, pesadas. Carregavam, de modo sutil, o presságio de uma tempestade.

E a tempestade era o motivo pelo qual estávamos naquela casa, naquele dia.

— Acho que não vai demorar — Lua começou, de modo muito baixo, enquanto se aconchegava no meu ombro.

Quis me afastar. Eu não queria que ela ficasse tão próxima, era desconfortável.. Pensei, por um único segundo, em empurrá-la abertamente. Mas logo descartei a ideia. Afastar-me fisicamente não ajudaria na situação.

— Eu sei — respondi, sem olhá-la. — Eu só preciso conversar sobre algumas coisas com você, não vai demorar.

Ela se aconchegou mais no meu ombro, encostando o alto da cabeça na curva do meu pescoço. O perfume doce com o qual eu estava acostumado encheu meus pulmões. Ela apertou minha cintura.

— Eu também preciso conversar com você, Trovão — ela disse, bem baixinho.

Isso era novo. Eu a havia chamado para conversar, não o contrário. Surpreso, tomei coragem para, dessa vez, afastar-me dela, desvencilhando-me gentilmente. Lua piscou, tornando a me encarar. Parecia incrivelmente tranquila. Tranquila demais.

— Não é nada importante — começou. — Eu só queria saber se você não estaria disposto a dar a sua parte da pedra pra mim.

Silêncio. Por um momento, duvidei do que eu tinha ouvido. Era completamente diferente do que eu esperava ouvir, se é que esperava ouvir de fato alguma coisa. Lancei um olhar de confusão, levantando as sobrancelhas.

— Como?

Lua apertou os lábios.

— É, Trovão. Sua parte. Você poderia?

Olhei para ela. Olhei bem para ela. E atestei: Lua estava falando sério.

Lua Cheia era uma menina bonita, esguia, nem muito alta nem muito baixa. Olhos tão escuros que tornava-se impossível diferenciar a pupila da íris. Os cabelos compridos, da mesma cor e de um ondulado revolto, cobriam as roupas pretas usuais e o os seios fartos. Porém, ainda que tivesse a aparência de sempre, por um segundo não a reconheci.

Só podia ser outra pessoa, e não a minha namorada.

De um súbito, quis me levantar. Definitivamente aquela conversa não estava realmente acontecendo. Eu havia chamado Lua para conversar. Porque eu queria apenas e unicamente terminar com ela. Jamais passara pela minha cabeça que ela também queria conversar comigo. Muito menos que o tópico da conversa fosse uma pedra de poder. Uma pedra de poder que estávamos prestes a drenar, ali mesmo no interior da casa que agora estava às nossas costas, dando sombra ao jardim impecável.

Afastei-me dela andando dois passos. Neguei para mim mesmo o que eu tinha acabado de ouvir.

Ela também se levantou. Ergueu a mão e puxou-me pelo braço.

— É só uma pedra.

Ela só podia estar de brincadeira. Não era só uma pedra.

Virei-me para ela, chocado.

— Estamos falando da mesma coisa? — perguntei, na esperança irracional de que ela tivesse enlouquecido. — Você compreende que amanhã é um dia fora do padrão, não é? Compreende por que precisamos drenar essa pedra de maneira igualitária?

Ela estalou a língua.

— Você nem sequer concorda com os ideais do seu irmão, Trovão. Está sempre reclamando e pensando em ir embora. Pensei que talvez por isso você concordasse em ceder a sua parte.

O tom dela parecia enquadrar uma provocação. Baixei a voz.

— A pedra será dividida igualmente, Lua Cheia. A tempestade de amanhã será enorme. Precisamos estar fortes para encará-la.

Ela colocou as mãos na cintura.

— Você não quer estar nessa tempestade e nós dois sabemos disso — retrucou.

Tudo bem, agora eu estava muito irritado. Respirei fundo, apertando os punhos ao lado do corpo.

— Não quero ter essa discussão com você — disse simplesmente, virando-me na direção da porta de entrada.

Ela estava maluca. Ela estava realmente maluca. Não era o motivo pelo qual eu queria terminar com ela, mas era mais um para a longa lista.

— Trovão, espere.

Pela segunda vez naquele dia, ela me puxou pelo braço, obrigando-me a dar meia volta. Só que, dessa vez, diferentemente da primeira, alguma coisa mudou.

Bem ali no jardim, no lugar onde Lua deveria estar, não havia mais ninguém. Não só não havia ninguém como não havia nada. Tudo havia sumido, sufocado por uma névoa esverdeada que agora enchia meus olhos, minha garganta, minhas mãos, meus braços. Meu braço. Meu braço esquerdo latejava, por algum motivo, e minha traqueia estava começando a se fechar. Em desespero, levei os dedos ao pescoço, procurando por oxigênio.

Tossi como um louco por pelo menos dez segundos antes de cair de joelhos sobre a grama cega. Meus olhos lacrimejavam, uma irritação repentina. E então tive a impressão de ter visto uma estrela rosa.

Ela tinha me enfeitiçado. Lua Cheia tinha me enfeitiçado.

Forcei-me a levantar. Forcei-me a respirar. Forcei-me a dissipar a névoa, sacudindo os braços em movimentos ansiosos.

— Trovão! Você prefere essa pedra a mim?

Ela estava me provocando. Puta que pariu. Era inacreditável.

— Trovão! — ela gritou novamente, tentando me puxar.

Desvencilhei-me num movimento brusco e perdido.

— Chega, Lua Cheia! Acabou! Chega!

Ela me puxou pela camiseta, sem sucesso, ainda me chamando. Comecei a correr, a tropeçar, irritado. Eu ia embora. Queria fugir dela, queria fugir do que ela tinha acabado de fazer.

— Trovão! — ela chamou novamente, enquanto minha vista enfim começava a clarear.

Dessa vez, não respondi. Avistei o borrão que marcava o portão e simplesmente o atravessei. 

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[Essa história é atualizada semanalmente, sempre às quartas-feiras.]

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