CAPÍTULO 1: IMPRUDÊNCIA

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O cheiro de chuva, misturado ao odor da comida da cozinha, me deixava com náuseas. Encostado na parede da sala de estar, com a janela fechada, eu conseguia ouvir o vizinho com a televisão ligada no jornal local, um noticiário que eu odiava simplesmente porque era obrigado a ouvi-lo por tabela todos os dias da semana, em todos os horários e reprises imagináveis. Encarar a casa dele, entretanto, por algum motivo que eu não sabia definir, costumava me acalmar. Possivelmente era porque eu sentia inveja daquela tranquilidade melancólica e solitária que ele tinha.

— Sua mãe está conversando com o Raio? — perguntou Relâmpago do sofá. Ele havia chegado fazia alguns minutos, mas não puxara assunto algum comigo desde que eu abrira a porta.

— Só aquelas recomendações de sempre — respondi banalmente, sem ao menos virar o rosto.

Um minuto de silêncio. O jardim do senhor que morava na casa ao lado fazia um contraste com o nosso, o dele verde e o nosso mal cuidado. Admirar a diferença sempre me entretinha. Era como pensar no clichê corriqueiro do bom contra o mal, do justo contra o injusto. O tipo de discussão que habitava minha mente com frequência.

— Você está bem? — eu sabia que Relâmpago perguntaria isso em algum momento. No entanto, estava esperando que não fosse tão cedo.

Lâmpa, como costumávamos chamá-lo, às vezes soava como um senhor de idade, mas a verdade era que ele só tinha aquela expressão ansiosa por conta de tudo que já havíamos passado. Ele era mais alto do que eu, talvez o mais alto do grupo. Ruivo, tinha sardas que subiam pelo nariz. O cabelo era liso e caía sobre os olhos castanhos de maneira desleixada, quase como se ele não os penteasse. Estava vestido de terno e gravata e sua boca tinha uma linha rígida de impaciência.

Respirei fundo. Relâmpago sabia que eu não estava bem. Sabia tanto quanto meu irmão saberia, assim que olhasse para mim de novo.

— Estou — menti. — Só a clima de toda noite de tempestade – respondi, ainda sem me virar.

— Ainda não está chovendo — ele comentou de volta.

Eu apenas o ignorei.

Mais alguns segundos se passaram. Respirei fundo e virei o rosto. Evitar olhar para ele era como um sinal de covardia, de certo modo. Era como se ele fosse a constatação de que não havia como fugir.

E não havia.

Eu sabia, por mais que gostasse de negar, que a tempestade de hoje seria uma alteração dos meios convencionais. Seria o atestado de que minhas insistentes brigas com meu irmão, minha eterna súplica por trégua e conformismo seriam definitivamente vetados dos tópicos de conversa. Eu só queria paz de espírito, viver confortavelmente, curtir meu recente alívio por ter deixado, enfim, o ciclo básico da vida de qualquer um: a escola.

Mas Raio era o tipo de irmão que havia se acostumado a impor e a ordenar. E contestar suas ordens era como contestar um pai, embora o nosso já não fosse vivo há anos - e esse talvez fosse o motivo por trás de tudo.

Meu pai, eu lembrava muito bem, costumava dizer que éramos boas pessoas. Meu irmão sempre levara isso muito mais a sério do que eu, o que o afetara de modo diferente. A verdade, no entanto, era que não éramos boas pessoas. Não se mantinha uma conversa com meu irmão, por exemplo, sem que se mencionasse o quanto o poder, a consciência social e a decência democrática eram nossos deveres como cidadãos.

Meu irmão, contudo, sempre se esquecia do fato (que para ele era um mero detalhe) de que tínhamos apenas 18 e 19 anos. Não era exatamente nosso dever defender coisa alguma. Aliás, na minha vã opinião de irmão mais novo, nós nem sequer éramos pessoas decentes. Afinal de contas, nós roubávamos, assim como os políticos. E roubávamos pensando em poder. A única diferença era que eles já detinham poder - e nós, não.

Caçadores de TempestadeOnde histórias criam vida. Descubra agora