Quando acabar, o que deixo?

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Conjecturas, pensamentos acelerados e em profusão junto com meu café da manhã. 

Como vai ser amanhã, encontrando o escritório do Sr. Geraldo vazio? 

O tal do filho dele, aquele de óculos escuros carregando o caixão e que só vi ontem, vai aparecer na empresa agora que o pai partiu? Ou vai continuar sumido? Será que o Sr. Geraldo deixou as senhas e arquivos dele para alguém continuar tocando a empresa? Para quem devo dar as informações? Será que tudo está organizado para continuarmos? Que bobagem estou dizendo para mim mesma, eu era assistente dele e sei onde cada coisa está! Ou pelo menos a maior parte. Posso administrar tudo tranquilamente se o filho não aparecer, e se outra pessoa assumir espero continuar trabalhando lá.. Pois é, além da dor por um grande patrão e praticamente amigo ter partido, agora plantou-se na minha cabeça uma semente de dúvida: Se o filho ou a esposa vier para administrar a empresa, será que continuarei trabalhando lá? E se continuar, ficarei na mesma função? Parece egoísmo pensar desta forma logo após o velório dele, mas não consigo evitar.

O domingo se arrasta e a mente fervilha. Acho que deveria visitar meus pais e me distrair um pouco, afinal amanhã será um dia pesado. 

Finalmente me decido. Ligo para meus pais avisando que passarei lá à tarde. Eles me convidam para almoçar, mesmo com hesitação acabo aceitando. Faz tempo que não passo lá. 

Depois do almoço, a tarde passa devagar. Ajudo meus pais a lidar com as galinhas, assisto junto a eles um programa de TV qualquer, tentando tirar as preocupações da cabeça. Chega a hora do café da tarde, com piadas e conversas triviais.

 Tenho certo receio de expor minha inquietação, afinal não costumo falar de trabalho com eles. Mas mais tarde, apenas com minha mãe, acabo tocando no assunto, de forma resumida. Ela apenas diz:  - O que não tem remédio, remediado está, minha filha. Não se preocupe tanto, as coisas vão se encaixar e se ajeitar. 

Depois de passar a tarde lá, saboreando os raios do sol que parecem brilhar diferente fora da cidade, pisar na grama e até correr um pouco com os cachorros, estou pronta para voltar à batalha cotidiana. 

Quando a noite começa a chegar, me despeço e agradeço a meus pais, prometendo visitá-los mais frequentemente. Mais leve, mais aliviada. Tentarei deixar as inquietações para amanhã. Afinal, preciso dormir bem para encarar seja lá o que  acontecer daqui em diante.


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A segunda-feira chegou, com os raios de sol atravessando a janela. Abro meus olhos e ouço o som do despertador, varrendo os últimos ecos dos sonhos conturbados. A água fria do chuveiro me acorda de vez para encarar a nova realidade: vai ser um dia muito, muito estranho no trabalho. Preciso organizar todas as coisas no escritório do sr. Geraldo, pois quem vier trabalhar no lugar dele precisará se inteirar rapidamente da situação da empresa e dos próximos passos a tomar.

Será uma tarefa dolorida, porém necessária. E tem de ser feita o mais breve possível. Sem fome, queimo o céu da boca com o café preto e termino de me vestir. As chaves da empresa ainda estão comigo:acabaram ficando na minha bolsa durante toda a confusão com velório, enterro e outras providências .

Chego ao trabalho e rapidamente abro a porta da frente, acendendo luzes onde é preciso e vou ligando os computadores tanto da minha sala quanto da do sr. Geraldo. Não devo perder tempo. Logo começam a chegar os demais funcionários. O silêncio é tão palpável que parece ter se materializado, virado mais uma das pessoas, batendo ponto, ocupando um lugar em alguma das salas. Só se ouvem os sons rotineiros, e ainda assim parece haver menos ruído que o normal.

Suzana já chegou e está contemplando a tela de seu computador, sem se mexer do lugar. Seu semblante é de quem dormiu pouco. Mas há algo mais em seu olhar... é um olhar que não costumava ver nela. E não parece ser somente tristeza.

Deixo organizadas planilhas e gráficos sobre a situação atual da empresa, o que ao fim das contas não toma muito tempo, pois faltava apenas atualizar os últimos três dias. Pastas com fichas impressas já estavam organizadas cronologicamente e as gavetas do escritório abertas. Estranho, achei que o sr. Geraldo sempre as trancava antes de sair.. e se tivesse deixado abertas para que eu pudesse localizar algum documento, teria me avisado. Acho que deve ter simplesmente esquecido.

Como todos os documentos da empresa estavam nos arquivos e nas fichas, não deve ter nada de mais nestas gavetas. Num ímpeto de curiosidade, abro uma delas. Não deveria ter feito isso... mas agora já fiz. Um envelope amarelo chama minha atenção, por ter meu nome escrito. Seriam instruções adicionais? Sem pensar muito, retiro-o da gaveta e o contemplo por uns momentos. Noto que há um outro, com o nome da Suzana, outro com o nome do filho Victor e mais um com o nome de Bernardete, a esposa dele. Não resisto e abro o envelope com meu nome. Não são instruções, é quase que..uma carta. Escrita há uma semana.

"Ana,

Se você está lendo isso, ou eu ainda não voltei de viagem, ou algo pior aconteceu. Eu deveria ter contado isso para você há mais tempo, em vez de escrever, mas não conseguia falar abertamente com nenhum de vocês. Talvez seja melhor assim.Sabe, já não sou mais tão jovem e venho adiando este momento, mas me dei conta de que não viverei para sempre e há coisas que você deve saber.

Já contei a você que tenho um filho, que está fora já faz um bom tempo. Você não o conhece, mas quero que contate minha esposa e peça a ela que entregue o envelope que está endereçado a ele. Eu deveria pessoalmente falar com minha esposa e com ele, porém se o pior tiver acontecido e você estiver lendo agora, confio a você esta tarefa. Sei que posso contar com você, sempre pude.

E aí vem a parte em que novamente você entra:  dentro deste envelope há um documento dando-lhe parte desta empresa. Quero que  você seja sócia  desta empresa, afinal  minha família, minha esposa e filho (caso apareça) irão precisar de seus conhecimentos.

Gostaria de pedir que cuidasse de Suzana. Nunca falei isso, mas você precisa saber.. ela é minha filha também, de um relacionamento que tive há muitos anos atrás. Por conta disso, tem direito a parte da empresa. Inclusive, ela tem dinheiro investido no nome dela há anos! Me sinto culpado por nunca ter falado com ela abertamente. Agi como um covarde durante muitos anos, escondendo da minha própria filha parte de sua história, sabendo que estava roubando possibilidades e escolhas que ela poderia ter feito.. fui realmente um covarde e espero que um dia ela possa me perdoar. Ah, se eu tivesse simplesmente falado a verdade há mais tempo!

Confio em você e espero que tudo possa ser feito da melhor maneira possível,

Geraldo.

Isso explica muitas coisas!!!

Será que a mulher e o filho do sr. Geraldo virão para cá ou devo ir à casa dela levar os envelopes?

E ainda preciso entregar o envelope da Suzana! Estranho.. ela disse que queria fazer uma faculdade. Ela simplesmente não tem ideia que já poderia ter feito uma, aliás, a vida dela poderia ser completamente diferente!  Sim, o Sr. Geraldo foi mesmo covarde com ela. Será que é isso? O olhar estranho que percebi nela..  Será que ela já  está sabendo?!?

Respira, Ana. Termina de arrumar esta sala e leva este envelope com o nome da Suzana. Seja lá o que estiver escrito, ela deve, ela precisa saber.

Várias Facetas, Várias VidasWhere stories live. Discover now