Transparecer a calma, por dentro explodir

26 1 0
                                    

Oops! This image does not follow our content guidelines. To continue publishing, please remove it or upload a different image.


O dia vai se arrastando.. me esforcei, atendi a tal cliente com um sorriso no rosto, fui educada e tal..Foi difícil! Vencer velhos hábitos não se faz de uma hora para outra. Sinto que usei uma máscara, mas foi para meu bem. Preciso criar novos hábitos,  melhorar meu humor, mesmo que seja fingindo no início. Não dizem que quando a gente sorri, engana nossa mente e acaba ficando feliz de verdade?  Enfim.  Me sinto cansada, mas ao mesmo tempo bem. Vou me lembrando o porque de estar aqui nesta empresa trabalhando há seis anos, o que me motivou a trazer, envergonhada, um currículo para cá e a pretensão que eu tinha de crescer e ser uma pessoa melhor quando cheguei. Não posso jogar fora tudo isso! Como vou querer melhorar o salário, crescer na vida, se continuar sem ânimo? O Sr. Geraldo poderia ter me demitido há tempos, se quisesse. Mas sempre foi assim, desde que comecei a trabalhar aqui ele tem me apoiado muito. 

As horas passam. O chefe deu uma saidinha e o ambiente está um pouco quieto, assim respiro um pouco... Se bem que o Sr. Geraldo deixou o rabo dele aqui. A tal da Ana, começou um ano depois de mim e virou puxa-saco dele. E agora está querendo se aproximar de mim, o que será que ela quer?

Minha mente é negativa demais, penso eu. Quem sabe na realidade ela seja até bem intencionada. A culpa de eu continuar na recepção é minha, eu que desanimei muito cedo. Até esqueci por que me candidatei ao emprego! Ironicamente, eu gostava de estar perto de pessoas, de conversar. E o que eu tenho feito nesses últimos anos? Ficando cada vez mais monossilábica!!!

Quer saber? Vou fazer uma faculdade. Pronto. Sacudir o marasmo de vez. Relações públicas, Letras (mesmo não tendo a ver com meu trabalho), Recursos Humanos, sei lá, algo que me faça voltar a estudar e a dar uma boa sacudida na minha vida. 

Preciso de novos desafios, botar a mente para trabalhar, mexer as ideias. Chega de ficar dando bola para as reclamações da minha mãe, que me cobrava por chegar tarde das festas com amigos. Ela vai continuar reclamando, mas pelo menos agora vou chegar tarde da faculdade. E se possível, almoçar fora. Preciso ficar mais animada,pois estou nesse estado por culpa minha mesmo.. passei tempo demais fazendo de conta que ainda era adolescente, saindo com o pessoal na balada mesmo depois que meus melhores amigos já não as frequentavam mais. E ficar em casa está me fazendo mal.Compreendo que minha mãe já tem idade e quer atenção, mas ela anda me pondo muito para baixo. 


Lá vem a Ana... 

- Oi, Suzana, tudo legal?

- Claro, está um dia tão lindo..

- Também gosto de dias assim. Ei, vamos almoçar juntas?

- Vamos!

Me assusto com meu próprio entusiasmo. Em seis anos, pouquíssimas vezes almocei com alguém da empresa. Ana vai à frente, para verificar se há mesas disponíveis ainda, pois o ponto é concorrido. Digo a ela que já venho - esqueci de pegar minha bolsa e preciso voltar. 

 Assim que saio da empresa, vejo pessoas se desviando de algo na calçada, vários metros à frente.Parece um embrulho.. será que alguém jogou lixo logo ali? Não, é algo maior.Minha curiosidade se aguça, parece que vi aquilo mexer. Me sinto atraída por aquela forma indefinida. É uma pessoa, vestida de preto.. chego mais perto. É um rapaz, e está chorando! Um sentimento de ternura e compaixão surgem de repente...

- Moço... está tudo bem?

Argh, como sou idiota. O cara está chorando, claro que não está nada bem! 

- Desculpe a pergunta boba..mas.. posso te ajudar? Fazer algo por você?

Ana deve estar me esperando, mas simplesmente não consigo sair e deixar o moço ali. Vejo uma mecha de cabelos loiros se mexendo... ele me ouviu. Será que vai falar comigo ou me escorraçar? Terá boa índole? Me arrisquei demais falando com um desconhecido? Mas ele está chorando..
Lentamente, o rapaz levanta a cabeça....

... e seus olhos, meio escondidos ainda sob o cabelo que chega até os ombros, fitam os meus por uns instantes.De repente, ele ergue um pouco mais a cabeça:

 - Me deixa! Ninguém se importa. Ninguém!

- Bem, estou me importando agora. E acho que sou alguém. 

Mas o que estou fazendo, falando com um desconhecido? O sentimento de ternura, de compaixão, volta. Puxa, um ser humano, chorando sozinho na calçada. Ele grita que eu o deixe, mas o olhar dele parece dizer o contrário...Não consigo deixá-lo ali.

 - Quer ajuda para levantar?

- Não! Eu me viro sozinho, sempre me virei, suma!

 Ao gritar desta forma e levantar, vejo seu rosto e tomo um leve choque. Está todo marcado, ele deve ter sofrido um acidente, porém há um bom tempo atrás. São cicatrizes, algumas grandes. Disfarço a surpresa, ele está levantando. Porém, perde o equilíbrio.Ele está nitidamente fraco. Rapidamente o seguro, mesmo com receio de deixá-lo cair. Mas não está tão pesado assim.  Algo em mim diz que devo, que preciso ajudar. Logo ele senta de novo, parecendo desorientado.

- Vou buscar um copo de água.

- Não..deixe que eu... não se...

- Você não tá legal, fica aqui que volto já.

Saio e pego um copo de água mineral em uma barraquinha logo perto, com receio de não o encontrar mais quando voltar. Mas ele continua exatamente no mesmo lugar, com um olhar desconcertado.

- Tome a água pelo menos.

- Obrigado.

Bem, pelo visto não vai mais me escorraçar. Preciso tirá-lo daqui, está ficando muito quente. Além disso, ele está usando um abrigo,  escondendo os braços. Debaixo de um sol desses, vai acabar desmaiando.

- Consegue levantar?
- Sim..sim. Quero ir para casa.

Decido ampará-lo por um trecho, parece que ele vai cair a qualquer momento.

- Para onde quer ir?

- Lá.. lá naquela escadaria, subo por lá para ir ao meu apartamento.

- Quer comer alguma coisa?

- Vou.. vou comer algo lá em casa.

Enquanto o acompanho, vejo Ana olhando atônita pela vidraça do restaurante. Faço um sinal para que ela não se preocupe, será que ela entendeu? Enfim, subo as escadarias ajudando o rapaz. Logo devo voltar, então conversarei com a Ana. Depois de uns bons minutos chegamos ao final da subida, e ele sinaliza que posso deixá-lo sozinho. Resolvo não forçar a barra apesar de ver que ele não está bem ainda. 

- Espero que que você melhore logo e fique bem. Preciso voltar ao trabalho agora. Tchau.. e sei que talvez não importe para você.. sou a Suzana.

- Victor. Tudo bem, pode voltar ao trabalho. Vou ficar bem.

- Espero que sim.

Realmente espero que sim. Sinto uma empatia por este moço, que há tempo não sentia. Como se hoje estivesse aprendendo a me importar de verdade com alguém, como se estivesse aprendendo novamente o que significa compaixão. Arrisco a sorrir antes de ir embora, não vivem dizendo que há gente precisando de um sorriso para sentir-se melhor? Quem sabe ele esteja precisando.

Sinto-me mais leve e disposta. Mesmo que amanhã ele esteja de novo na calçada, mesmo que o que eu fiz hoje não mude a vida dele, espero que pelo menos eu tenha feito alguma diferença. Bem, ainda dá tempo para voltar ao trabalho sem me atrasar. Mas não dá mais tempo para ir ao restaurante. Meu estômago ronca... hum, tenho ainda uns minutos. Paro na barraquinha de lanches e compro um sanduíche natural e um suco de caixinha, mesmo não gostando muito. Eu deveria ter pego o número do celular da Ana. Espero que ela não esteja muito preocupada. Enfim, me entendo com ela depois. 






Várias Facetas, Várias VidasWhere stories live. Discover now