Capítulo 6 - Furacão

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Era inacreditável, pensou Murilo. Tão inacreditável que ele não conseguia nem pensar. Podia sentir os neurônios tentando fazer suas conexões, a pequena energia em descarga atravessando a bainha de mielina até o próximo neurônio... Mas alguma coisa nessa conexão não estava funcionando.

Alguma coisa da conexão com Isadora nunca funcionava.

Murilo nunca esqueceria o dia que colocou os olhos nela. Era uma terça-feira, primeira semana de aula, ele estava no segundo período quando ela entrou. Ele nunca tinha sido um cara de muitas conversas com as pessoas, estava no canto do corredor, lendo Crime e Castigo quando foi virar a página, por um acaso do destino levantou os olhos e lá estava Isadora, entrando no corredor, com aquele ar que calouro sempre tinha e que os identificava há quilômetros.

Por muitos e muitos anos, durante o relacionamento com ela e como tudo acabou, e principalmente depois quando teve que lidar com as consequências, Murilo se perguntou o que teria acontecido se ele nunca tivesse levantado o olhar da história de Rodión Românovitch. Se ele não tivesse terminado a página naquele instante. Se Isadora não tivesse chegado nesse exato milésimo de segundo, tudo – absolutamente tudo – teria sido diferente?

As vezes Murilo chegava bem próximo da loucura quando pensava nisso por muito tempo.

Na grande maioria das vezes, Isadora sempre o deixava perto da loucura, em qualquer situação.

Como naquele momento, no seu hospital, depois que ele atropelara uma criança porque fechara os olhos por mais de um segundo do limite do que deveria – ele nunca admitiria que dormira dirigindo. Só porque ele realmente achara que dessa vez tudo seria diferente, que aquela história não lhe afetava mais e que, principalmente, Isadora não tinha mais o poder de virar seu mundo de cabeça para baixo e fazê-lo perder o controle.

Mas é claro que nada estava saindo como ele planejara. Claro.

— Que porcaria – a voz de Daniel o chamou para a realidade, para fora de sua mente que dava voltas e mais voltas e continuava no mesmo lugar – que diabos está acontecendo aqui?

Isadora acabava se levantar do cambaleio, que derrubara a pequena mesinha de alumínio e jogara muitas coisas ao chão. Murilo piscou, ainda atordoado, tentando realinhar seu pensamento.

— Tem cinco anos que estou nessa enfermaria e nunca, nunca mesmo, vi tanta confusão – Daniel disse, a voz um tom irritado que lembrou muito bem a Murilo que, embora o traumatologista não gostasse, ele era um Vale e, como um Vale, era também dono da cidade – Se vocês querem mesmo se matar, poderiam pelo menos esperarem ver se a pequena está bem? Eu acho que essa é a prioridade aqui, não é?

— Isis! – Isadora disse, finalmente, passando a mão pelos cabelos e depois pelo rosto.

Depois de toda aquela informação essa era a única palavra que saía da boca daquela mulher.

Francamente!

— Eu preciso ver a minha filha.

— Eu vou também. – Murilo decidiu responder, embora Isadora não parecesse estar falando para ninguém além de si mesma.

Ela levantou o olhar, o encarando, daquele jeito que sempre o tirava do sério, empinando o queixo e o fuzilando com aqueles malditos olhos azuis.

Os olhos mais bonitos que Murilo já havia conhecido. Mas não eram os olhos da filha dela. Os olhos de Isis eram iguais aos dele.

Seu coração apertou e ele quis gritar, quis quebrar alguma coisa... ou alguém.

Mas seja lá o que estava passando na cabeça de Isadora – Murilo sabia bem que estava porque a boca dela tremeu involuntariamente, uma coisa que sempre acontecia quando ela estava pensando em falar alguma coisa – ela desistiu. Isadora fechou as mãos em punho e marchou, com passos duros, até a porta, sem lhe dignar nenhum outro olhar.

Feridas Profundas (HIATO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora