Capítulo 3 - Quem Diria

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Fazia muito tempo, pensou Murilo. Muito, muito tempo, desde que ele havia colocado os olhos sobre Isadora. Ela ainda era uma moça da última vez. Ainda dava para ver boa parte da sua ilusão e fé na humanidade em seus olhos. Murilo sabia muito bem disso porque essa foi a primeira coisa que ele viu quando a encarou numa das salas de aula de medicina, na USP.

A segunda coisa que Murilo viu nela foi o sorriso.

Agora, oito anos depois, não havia mais brilho nenhum de fé ou ilusão em qualquer coisa que seja. Não havia mais brilho, na verdade. Nem sorrisos. Isadora estava muito diferente da moça que rondava sua mente, vezenquando, quando não conseguia dormir.

Isadora agora era uma mulher.

— Fiquei bastante abismado quando recebi seu currículo. – ele disse, dois passos à frente dela.

Você recebeu meu currículo?

Ah, aquela elevação na voz toda vez que ela se assustava com uma informação. Murilo teve que conter o sorriso.

— O que é que você esperava, doutora? Sou o chefe da minha equipe. – ele virou o corredor – Também sou o diretor do hospital – deu de ombros – Ninguém pode mesmo ser contratado ou demitido sem que a ordem passe pelas minhas mãos. Nem mesmo você.

Doutora Isadora – ele pensou – até que era bom dizer aquilo. Melhor mesmo era tê-la ali, na sua equipe, subalterna a ele.

Quem diria.

Ela permaneceu muda atrás dele.

— Só fico pensando por que os ventos te trouxeram justo para cá, com todo esse seu currículo.

— Os mesmos ventos que você, possivelmente.

— Ah, disso eu tenho certeza de que não. – ele parou, girando nos calcanhares para encarar a mulher uma cabeça mais baixa que ele.

— Há muitas coisas das quais você tem certeza, Murilo, e a maioria delas você está errado.

Os dois sustentaram o olhar.

O verde dele contra o azul dela. E aquela sensação assustadora ganhou seu peito de novo, aquela sensação horrorosa, aquela sensação que ele odiava.

Aquilo ia ser mais difícil do que ele havia imaginado.

— Isadora – ele disse, aquela sensação do nome na língua dele, fazendo cócegas na sua língua toda vez que pronunciava o som de "z" – achei que não precisaria lembrar a você, mas pelo visto precisamos esclarecer tudo isso. Aqui, sou seu chefe. É a mim que você deve satisfações.

— De procedimentos médicos – ela o interrompeu.

Ele conteve o impulso de rolar os olhos.

— E também deve ser um pouco educada.

— Você também pretende que eu te sirva? – ela fez uma reverência floreada, com a mão direita, inclinando o corpo – Meu rei.

Aquelas duas palavras, em tom irônico, o atravessaram como um tiro e Murilo precisou de quase toda sua força de autocontrole, conseguida nos últimos anos, para não dar um passo para trás. Mais força ainda para não esmurrar a parede. E, céus, ele nem sabia contar quanta força foi preciso para não esmurrar Isadora bem ali no meio do corredor do seu hospital.

— Eu não conheço essa mulher, mas com certeza já gosto dela – a voz zombeteira soou atrás dele.

Certo. Era praticamente tudo o que lhe faltava.

Feridas Profundas (HIATO)Where stories live. Discover now