Capítulo 1

24.4K 2.6K 980
                                    

Estou viva por 119 anos e 10 meses. Acredite, esse número é ainda mais assustador quando dito em voz alta, e esse provavelmente é o motivo pelo qual eu nunca o faço. Todo o remorso não parece compensar os anos... Até acontecer novamente.

Vocês cruzam olhares, e então você não consegue evitar o sorriso pois a beleza dele te hipnotiza. Ele senta ao seu lado e te chama para um café, ou para um show, um jantar, talvez um cinema. E você aceita, pois talvez esse homem seja "ele". Semanas se passam, ocorrem trocas de beijos e carícias, você descobre seus segredos mais profundos e descobre que não há mais tempo. Olha fundo nos olhos desse homem inocente e ordena para que vá ao mar, se jogue na água e diga seu nome... Meu nome... Siena. Ele obedece, não é como se tivesse alguma escolha. E esse é o fim, porque você acaba de matar mais um homem pelo qual se apaixonou.

Já fiz isso exatamente 42 vezes, e lembro de cada uma como se fosse a primeira. Depois da quinta ou sexta você acaba criando uma espécie de armadura para evitar qualquer sofrimento, mas é claro que ela nem sempre funciona, especialmente após os ocorridos. Aprendi do jeito mais difícil que depois de enviá-los á água, você tem que partir o mais rápido possível, pois os avisos de 'desaparecido' e logo após alguns dias o corpo na beira da praia, não é algo confortável de presenciar. O velório e o enterro não diminuem a dor, deixar flores e chorar no túmulo só criam uma intensa sensação de hipocrisia. Nenhum lugar é seu lar, a não ser o próprio oceano.

"Você é minha guardiã, Siena", disse a deusa. "Eu preciso de você."

E quem sou eu para negar o pedido da deusa que salvou a minha vida?

••••••••

No dia 18 de maio de 1916, eu e minha família embarcávamos em um dos vários navios de fuga que saíam da costa francesa em direção á América, para longe da guerra. Mais de cem passageiros perderam a vida naquele navio, mas eu não fui um deles.

Após ouvir um estouro e gritos vindos das fornalhas , pessoas se contorciam para chegar aos botes salva vidas a tempo, até descobrirem que não havia nenhum. Um barco clandestino sem segurança para refugiados, é quase um clássico. Passageiros choravam e abraçavam suas famílias, mas em meio à multidão eu não encontrei a minha, não sabia ainda que nunca mais os veriam. Meus gritos não eram ouvidos em meio ao choro desesperado e o rangido da lataria se rompendo sob nossos pés, e não lembro sentir quando fui arremessada para a água por um passageiro descoroçoado.

Os gritos eram inúteis embaixo d'água, ou ao menos eu achava até uma voz ecoar na minha cabeça e cessar qualquer tipo de agonia e dor:

"Siena, eu preciso que me ouça com atenção. Você quer sobreviver?" Sacudi a cabeça repetidamente enquanto me debatia, até sentir como se a água segurasse cada centímetro do meu corpo e me puxasse para baixo. A luz diminuía e estranhamente, manter os olhos abertos não incomodava, mal eu sabia o porquê. Então uma mulher apareceu... Bem, meio mulher.

A outra metade era um peixe.

Nunca havia acreditado em sereias, livros a traziam como mulheres sedutoras que induziam homens a se jogarem ao mar apenas com suas vozes, elas eram um dos vários desafios de Ulisses na Odisséia. Mas Atargatis mudou todos os meus conceitos, e a mulher exuberante com uma cauda verde e azul me conquistou não com uma canção, mas com uma história de amor.

"Minha criança," ela disse, tocando meu rosto enquanto seu cabelo castanho dançava ao redor do seu rosto moreno. "Posso lhe dar uma vida eterna, em troca de um pequeno favor." A observei, confusa e hipnotizada, sem saber ao certo como responder. "Preciso que devolva-me o amor da minha vida".

SirenaWhere stories live. Discover now