17. PESADELO (parte V)

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Um envelope gordo, de cor parda, jazia sobre a mesa de vidro ao lado de uma caixa de tênis preta, com linhas brancas tríplices que a cortavam de lado a lado pelo comprimento. Era da Adidas, sem dúvida. 

Daniel começou a retirar uma pilha de documentos de dentro do envelope, distribuindo-os sobre a mesa, à minha frente.

– Preciso que me traduza estes documentos que... estão em português... – ele pigarreou, disfarçando um olhar divertido. – Você pode fazer isso, não é?!

Meus olhos atravessaram o vidro da mesa e foram parar direto no chão. 

Ele realmente se lembrava de cada palavra idiota que eu lhe tinha dito na noite anterior, a respeito de minha incapacidade de falar outros idiomas além do inglês e do português.

– Claro... – falei com a voz baixa, constrangida. – Posso dar conta do português.

Folheei algumas páginas dos documentos que estavam grampeados em jogos de dez ou quinze laudas. Havia artigos de pesquisas misturados a contratos da empresa com clientes particulares.

– Não tem pressa. Pode me entregar no final da semana que vem – Daniel me deu prazo largo.

Eu não conseguia entender o que acontecia ali. Eu era uma tremenda farsa, ele sabia disso, no entanto, ficava ali, me tratando como se eu fosse uma profissional qualificada à altura do cargo, merecedora de consideração de sua parte.

– Ah! Caso precise de algum material para auxílio, tipo dicionários, fale com a Sue. Nós temos uma biblioteca no Center, com um acervo bastante considerável.

– Estou sabendo.

A caixa de tênis foi empurrada para minha frente, por Daniel, ainda de pé ao meu lado.

– É minha? O-o que tem aqui?

– Não se anime muito, não é um tênis. Só itens de primeira necessidade.

Abri a caixa e vi uma caneta prateada bonita, com a logomarca da empresa impressa. Tinha ponta de ferro fina, daquelas antigas, de nanquim recarregável. Retirei de dentro, ainda, um celular novo – o modelo era tão sofisticado que me perguntei se saberia manipulá-lo corretamente ou se precisaria de ajuda do manual –, um dicionário de Ciência Ambiental e meia dúzia de pen drives.

– Precisa de mais alguma coisa, Nina? – Daniel ergueu ligeiramente as sobrancelhas grossas, bem delineadas.

– Sim. De um computador. Qual desses eu posso usar?

– Qualquer um. Pode ficar com o último da direita, que é o menos usado aqui – apontou o do canto da parede, sobre a extensa bancada. 

– Mas vamos te dar um laptop para que possa trabalhar fora do escritório também.

– Não precisa – respondi num impulso imediato, sem querer mais nada dele, nenhum favor. Estava ganhando coisas, quando deveria estar sendo demitida. Minha culpa estava no limite. – É que... eu já tenho um... que me serve bem.

– Tudo bem, então – ele coçou a cabeça, meio que sem entender como alguém recusa um laptop novo.

Neste instante, Ojore passou por nós, distraído, ao som alto dos fones que tampavam seus ouvidos. Saiu da sala com três pastas enormes debaixo de um só braço. 

Sumai, que digitava em frente ao computador feito uma metralhadora, repentinamente também deixou o escritório para atender uma ligação de telefone celular.

Era a oportunidade de que eu precisava. Daniel e eu estávamos a sós.

Tomei coragem para fitar meu chefe que, agora, sentava-se ao meu lado e comecei a falar. Se não tentasse esclarecer as coisas com ele, ficaria mal pelo resto dos dias que teria em Etna.

– Daniel, eu preciso muito conversar com você – só consegui falar olhando-o sob pálpebras baixas. 

Se já era difícil encará-lo antes, quando pensava que era um subalterno de jardim, agora, com seu novo status de chefe bilionário, era muito, muito pior.

– Fale... – disse ele calmamente, apoiando os antebraços sobre a mesa de vidro, oferecendo-me um sorriso amável desconcertante.

Acalme-se, Nina!, gritei para mim mesma, desconfiando que, de certo modo, Daniel já sabia o que eu ia dizer.

Para aumentar meu nervosismo, Sumai passou para o lado de dentro novamente, tendo encerrado a ligação ao celular. Como se sentou no computador, a alguns metros de nós, prossegui, mas falando baixo, para manter aquela conversa bem longe dos ouvidos dela. 

Bastava ter vergonha de um só Attali por vez.

– É sobre ontem...

– O que tem ontem? – Daniel rodopiou sua caneta nos dedos, num pequeno malabarismo. – Teve indigestão por causa do sanduíche?

– Não! – minhas mãos começaram a tremer novamente.

– Eu... olha, eu cometi um grave erro ontem à noite, quando... lhe falei coisas bastante inapropriadas... você sabe... 

Minha voz estava trêmula, abafada, e meus olhos piscavam como que tentando me ajudar a achar as palavras certas. 

– Bem, o que eu quero dizer é que... não é possível que não esteja chateado comigo...

– Deveria estar? – havia um tom de ironia em sua voz grave, macia.

– Não comigo... digo, não propriamente com a minha pessoa, mas com o fato de eu estar trabalhando nesta empresa, e... na sua equipe.

– É um prazer que esteja aqui conosco, Nina – ele tampou a caneta e a colocou no bolso da camisa, depois virou o corpo, ficando totalmente de frente para mim. – Não sei por que eu deveria estar insatisfeito...

– Você tem todos os motivos para estar até mesmo revoltado com a minha presença aqui! – minha voz saiu um pouco mais forte que deveria. – Eu não entendo porque ainda...

Antes que eu terminasse de falar, Ojore entrou feito um furacão no recinto, fazendo meus pensamentos voarem para longe. Colocou livros e pastas sobre a mesa em que eu e Daniel estávamos, e se plantou bem na nossa frente. O grandalhão cantarolava uma música incompreensível com a glote, acompanhando o som do seu iPod.

– Escuta... será que podemos conversar, a sós, em algum lugar?! – perguntei baixinho, quase em súplica.

– Como quiser. Podemos conversar durante o almoço, está bem?

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Fragmentos de uma ConchaWhere stories live. Discover now