6. ALIEN (parte I)

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Só despertei porque meu estômago era agressivo o suficiente para produzir roncos assustadores.

Tateei no escuro para checar as horas no celular. Fiquei boba quando vi que passavam das 21h. Eu nunca havia dormido tanto numa tarde. Joguei a culpa no cansaço da viagem e, principalmente, no esforço físico descomunal que fiz, carregando minha mudança até o quarto.

Subitamente me lembrei de algo de suma importância. Acendi a luz do quarto e procurei o folder que a recepcionista da empresa me entregara mais cedo.

Droga.

O refeitório já tinha encerrado os serviços às 20h e eu havia perdido o jantar. De modo automático, comecei a pensar no que fazer a respeito, uma vez que ingerir calorias era um gesto involuntário para mim, como respirar. Comecei a avaliar as possibilidades de existir uma lanchonete 24h dentro daquele complexo empresarial que se assemelhava a uma minicidade, já que estava totalmente fora de cogitação um delivery de pizzas, ao menos num raio de cem quilômetros.

Antes de sair, dei um telefonema rápido para tia Helena avisando que estava tudo bem. "O avião não caiu", brinquei. Ela ficou contente em ouvir minha voz e saber que eu estava bem, mas pediu para que eu não brincasse com assuntos sérios, de vida ou morte. Perguntei pela Amy só por perguntar - eu ainda não queria falar com aquela traidora - e ela disse que sua sobrinha já tinha ido dormir. Presumi que era uma mentirinha gentil da tia Helena, para não dizer que a Amy também não queria falar comigo.

Estamos quites, então, pensei.

No fundo eu sabia que, mais dia, menos dia, nossa briguinha ia passar. Só precisávamos mesmo era de um tempo para nos refazer da súbita despedida e nos acostumar a viver de Internet para mantermos nossa amizade, esquecendo os milhares de quilômetros que nos mantinham, agora, afastadas. Um aperto começou a se formar em meu peito e, antes que eu começasse a ficar melancólica demais, resolvi ir em busca de alguma comida para espantar a fome e a solidão.

Antes de sair, dei uma conferida no espelho, meu inimigo-mor.

Eu estava parecendo uma mendiga descabelada.

Deveria ter voltado para cama, para poupar alguém de ser assustado àquela hora da noite, mas o ser que roncava ansioso dentro da minha barriga era mais poderoso que meu lado bonzinho.

Então, passei a escova apressadamente nos fios castanhos-escuros e os prendi em coque com uma caneta. Na verdade, dos cabelos eu não podia reclamar. Eram fáceis de cuidar, naturalmente lisos, com pouquíssimas ondulações, e só quando eu dormia por cima deles, molhados, é que ficavam estranhos daquele jeito.

Já quanto às roupas, não havia solução. Além do sobrepeso que não ajudava, fugia-me a paciência para procurar, em meio à bagunça da mala, peças que se combinassem, de modo que saí do jeito que estava mesmo. Calça de moletom cinza, camiseta vinho com estampa da Estátua da Liberdade e a mesma sapatilha creme baixa que usei durante o dia e me presenteou com bolhas nos calcanhares. Não encontrei, na caixa de papelão, meu amado e encardido snickers.

Do lado de fora do alojamento estava tudo escuro, sem qualquer iluminação.

Aquela empresa suntuosa ou passava por apertos e não tinha pago a conta de luz, ou era mesquinha a ponto de ter estabelecido aos moradores dali um tipo de "toque de recolher" tirano, só para economizar energia.

Calei meus julgamentos assim que dei dois passos, porque, à medida que caminhava, pequenos LEDs tom de âmbar se acenderam consecutivamente sobre mim e à minha frente, iluminando o caminho de pedras que eu pretendia seguir, sem saber direito onde ele ia dar; observei que aquelas lâmpadas econômicas estavam discretamente embutidas sobre toda a extensão da pérgula que cobria minha cabeça.

Fragmentos de uma ConchaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora