16. PESADELO (parte IV)

618 136 6
                                    


Ao final da palestra, Sumai esperou até que eu me unisse à equipe. Em seguida, fomos caminhando juntos para o escritório. 

Se aos olhos comuns os Attalis pareciam tigres siberianos, eu devia ser a lontra. Simplesmente não me encaixava ali. Mas o que incomodava mesmo era não encontrar um buraco bem grande onde pudesse me enfiar dentro.

Quando Daniel abriu gentilmente a porta do escritório, liguei o cronômetro mental esperando pela dispensa. Ojore se curvou como um serviçal para mim, pondo um braço sobre a barriga e gesticulando o outro para que eu e Sumai, as damas, adentrássemos o local primeiro.

Daniel recostou o quadril de lado no tampo de vidro da mesa, onde papéis soltos alinhavam-se de forma organizada.

– Prontos? – dirigiu-se a mim e seus irmãos.

Ele estava dando início à reunião de equipe, mesmo estando todos desordenadamente espalhados pela sala. 

Cogitei que talvez só precisasse mesmo de alguns minutos para me despedir. Receberia um belo pontapé no traseiro, rápido e certeiro. Parei próxima à bancada de computadores, onde Sumai estava.

Cruzei os braços e esperei a bomba vir.

– Bom, pra começar vamos dar boas-vindas à nossa nova colega... Nina.

Todos observavam-me, aparentemente satisfeitos com minha presença. Sorri, sem graça, sem crer direito no que ouvia e via.

– Vamos dispensar maiores formalidades – ele disse. E continuou, dirigindo o olhar só para mim: – Como já sabe, eu sou o Danny, do seu lado a Sue, e aquele é o Ojo. Essa é toda a nossa equipe. Espero que goste da nossa humilde instalação e que tenhamos um longo período de convivência saudável e produtiva.

"Longo período de convivência", ele só podia estar de brincadeira.

– Acredito que a Sue já deve ter lhe mostrado o complexo.

– Parte dele – disse ela.

– Não precisa se assustar com o tamanho da empresa... – ele me encarou com uma feição irônica e senti minhas bochechas ficarem quentes. – É uma propriedade vasta, mas muito segura também.

– Já percebi.

Daniel se lembrava da minha desconfiança a respeito de sua integridade moral.

O tarado à solta nos jardins de Etna.

Pigarreei, minhas mãos frias começaram a formigar.

– Pois bem... então, vamos lá! – ele estalou os dedos, pedindo a atenção de todos. – Esta empresa trabalha basicamente com pesquisas para o desenvolvimento de novos medicamentos, como você ouviu o Sullivan falar há pouco... – ele tratava o diretor como um carinha qualquer. – Sobretudo, medicamentos de origem vegetal, os fitoterápicos.

Senti uma pontada de dor na cabeça ao ouvir aquilo. "Eu trabalho com plantas", foram suas exatas palavras, na noite anterior. 

Uma pergunta um tanto óbvia me cutucou, também, naquele instante: Se Daniel era um Attali, por que estava metido na reserva, na noite passada, dentro daquele macacão sujo? 

Guardei a pergunta para um momento oportuno, vendo-o prosseguir.

– Nossa função, como o nome do setor já diz, é controlar o resultado das pesquisas. Na verdade, mais do que isso. Tentamos garantir o êxito delas, supervisionando-as bem de perto. Quando um projeto termina, invariavelmente ele passa por nosso crivo. Se aprovarmos os resultados obtidos, então encaminhamos os relatórios para a direção, a fim de que sejam negociados.

Em síntese, pela explicação que me foi dada, Daniel ficava responsável mais pela parte de supervisão, conduzindo pesquisas ou dando apoio técnico científico. Quando necessário, fazia parcerias com órgãos externos, como universidades.

 Sumai preferia avaliar os resultados, mas também auxiliava a direção na prospecção de clientes potenciais, interessados em comprar os estudos inéditos sobre as substâncias encontradas. 

Ojore, ao que tudo indicava, era o craque na parte de informática, fazia programas complexos de comparação de dados, com gráficos, elaboração de planilhas, e tudo mais sobre aquilo que eu não entendia bulhufas.

Daniel discorreu ainda sobre a questão do tempo. Eu poderia usar o meu do modo que me fosse mais conveniente, mesmo trabalhando fora do escritório. 

Salientou, porém, as duas únicas exceções a essa regra: reuniões de grupo, em que todos teriam necessariamente de estar presentes; e prazos finais de entrega de relatórios, dando a entender que, como em qualquer empresa séria, dormiriam e acordariam ali, se isso fosse necessário para finalização dos mesmos.

– Agora, vamos ao que interessa especificamente para você, Nina... – Daniel me fitou, calmamente. – A princípio, nós vamos usar suas habilidades como intérprete...

Jurava que podia ver naqueles lábios um sorriso sendo contido. Estralei os dedos, dormentes de tensão.

– Mas quero que se envolva com um pouco de tudo ao longo do tempo. É importante que você não se limite a fazer apenas as traduções, mas comece a se inteirar sobre o conteúdo de tudo o que passa por suas mãos.

– V-vou fazer o possível – falei sem conseguir encarar seus belos olhos escuros.

– É bem provável que você esteja colaborando com a análise de resultados, dentro de três meses. – disse Sumai com uma cara otimista.

– E quem sabe viajando, também! – completou Ojore, tentando me animar com a hipótese. Ele amassava descontraidamente uma bolinha de papel nas mãos.

– É...quem sabe – Daniel congelou os olhos sobre Ojore, num tom claro de desaprovação.

Percebi que, nesse instante, Sumai cruzou os braços e fitou o chão. O grandalhão, num gesto rápido jogou a bolinha dentro da gaveta mais próxima e desfez a expressão alegre, dando-se por vencido. 

Todos ficaram subitamente sérios. Acho que duvidavam que aquilo fosse acontecer um dia. Eu também.

– Bem, acho que ficou tudo esclarecido. Ao menos o básico para o seu primeiro dia. Antes de encerrarmos, tem alguma pergunta a fazer, Nina? – questionou-me Daniel, com polidez.

É claro que eu tinha. Inúmeras. Mas não dava para despejá-las ali. Precisava de uma reuniãozinha particular com o chefe.

Respirei fundo novamente e olhei para aquelas três figuras singulares que pareciam estar de folga, usando roupas casuais e esportivas, enquanto eu era a única figura a destoar do ambiente.

– Tenho uma só pergunta... – lancei a inofensiva. – Bem, eu... queria saber se estou vestida adequadamente?

Ojore deu uma gargalhada espalhafatosa. Sumai o acompanhou, mas foi mais comedida. Daniel segurou o riso, por educação.

– Fique à vontade, Nina... – respondeu Daniel, com ar tranquilo. ­– Etna é um lugar bastante livre... ninguém aqui precisa usar paletó e gravata para saber o que está fazendo. Nós, particularmente, apreciamos roupas mais leves, mas não há restrições quanto ao que vestir. Então... pode usar o que bem entender.

– Menos biquíni, é claro! – censurou Sumai, bem-humorada.

– Por que não?! – Ojore protestou. – O chefe disse sem restrições!

Sumai puxou as orelhas de Ojore, fazendo-o gemer. 

Eu corei. 

Daniel riu da brincadeira, sem tomar partido.

                                                                                    ***





Fragmentos de uma ConchaWhere stories live. Discover now