- Isto, meu amigo [debochava], é para você nunca mais esquecer de trocar as roupas após uma cagada!

Virou-se novamente, afastando-se em direção ao mercado, com a vereadora a tiracolo, sendo seguido pelo olhar do ex-comparsa. Henrique cuspira um jato de sangue na terra, antes de seus olhos pararem de acompanhar a investida ao dono do Del Rey e se fecharem, eclipsando sua mente.

3

Borges estava distraído atrás do balcão, lendo seu jornal, quando viu um SUV encostar ao lado de seu carro. Não era alta temporada, mas era inegável que era um carro de gente rica, talvez algum turista que estivesse vistoriando seu imóvel e que, voltando para a cidade grande, resolveu passar no mercadinho e comprar alguma coisa para viagem. Pães, salames, queijos, estas coisas. Talvez a féria do dia fosse boa, afinal, mesmo com o tempo feio.

Por um momento algo pareceu errado: podia jurar que vira descer três pessoas, mas apenas duas vinham para a loja. Estava com os óculos para leitura, que não eram bons para ver de longe. Mas a chama da desconfiança apagou-se quando os clientes entraram na loja, pois, embora Borges não conhecesse o cara de terno, sabia que a menina de vestido era Gisele Ribeiro, a vereadora que só defendia vagabundos. Não simpatizava com a garota, mas conhecia o pai dela das reuniões dos dirigentes lojistas, e admirava-o pela astúcia nos negócios. Talvez isto fosse apenas uma fase, já que a fruta nunca cai longe do pé.

- Pois não, em que posso ajudá-los ? [disse o velho comerciande, com um sorriso que aos poucos foi sumindo ao ver a arma na mão do homem]

4

- As chaves do Del Rey! Agora! [falou Marcos, mirando no peito de Borges, há cinco metros do mesmo]

O comerciante ergueu as mãos, e olhava confuso para o casal a sua frente. Seus olhos chegam a se encontrar com os de Gisele, tão nervosos quanto.

- ESTÁ SURDO, VELHO! [Marcos berra enquanto engatilha a arma] DÁ A PORRA DA CHAVE DO CARRO!

Um trovão ribomba no campo, seguido de uma chuva torrencial. Marcos dá uma espiada na rua, temendo ver as viaturas da polícia. Nada. Por enquanto, tudo corre bem, ele pensa, até voltar seu rosto para Borges, menos de um segundo depois, e enxergar uma espingarda mirando em seus olhos.

- Jogue a arma, rapaz. [fala o lojista, ainda com a boca seca e o coração palpitando] Não faça movimentos bruscos. Não é o primeiro que tenta me assaltar, e nem o primeiro que tenho na mira.

Marcos o encara, sem fraquejar nem soltar a arma. O mau, o bom e a donzela, como num velho filme de bang-bang, pensa ele. Estava encurralado, em dúvida entre se arriscar ou se entregar. Outro trovão, ainda mais perto e mais alto, e as pupilas do velho nem se dilataram. Assaltar algo na zona rural fora um erro. Uma cagada digna de Henrique, pensa ele. Suor brota de sua testa, e, em um movimento rápido, Borges engatilha a espingarda.

- Você é surdo, filho? Solta esta arma!

Marcos não queria ser morto em um mercadinho, por um velho que poderia ser seu avô, mas não lhe restava cartas na manga. Render-se, por ora, lhe daria pelo menos um tempo para pensar em alguma solução longe da mira de um velho bacamarte. Desengatilhou a arma, ergueu sua mão livre e a colocou lentamente sobre o balcão, ao lado da registradora. Antes que pudesse pensar em algo, o velho lhe dera uma coronhada no lado do rosto, que o fez cambalear e, a seguir, tropeçar nos vidros de compotas caseiras, caindo no chão sobre os cacos pontiagudos.

Um cheiro de maçã impregnava o ar, a camisa branca de Marcos, por baixo do terno, adquiriu tons de vermelho mais claros onde sujara com a geleia, e mais escuros onde os vidros lhe perfuravam. Com o nariz quebrado, pingando sangue e a mente atordoada, Marcos tentava inutilmente arrastar-se para a rua, machucando-se ainda mais.

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