CAPÍTULO 1

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1

Chovia forte na madrugada de Glésgou, cidadezinha do interior do Rio de Janeiro, embalando o sono de Gisele após um dia muito conturbado na câmara municipal.

Na ordem do dia estava seu polêmico projeto de lei no qual, caso aprovado, proibiria que a Guarda Municipal utilizasse armas de fogo, além de um voto de repúdio à truculência tanto da GM quanto das Polícias Militar e Civil na recente operação que desarticulou a maior boca-de-fumo da cidade, efetuando dezessete prisões, com o saldo de seis suspeitos mortos.

A garota era filha de Otávio Ribeiro, dono da rede de supermercados Market & Market, presente no Brasil e em mais nove países pela América. Ela e o pai raramente se viam, mas nenhum dos dois fazia muita questão que houvesse uma convivência entre eles, já que, para Gisele, Otávio é um capitalista cretino, egoísta e opressor, enquanto para Otávio sua filha era a ovelha negra da família, já que resolvera fugir com o namorado maconheiro (agora já ex-namorado, mas ainda maconheiro), ao invés de concluir a faculdade de direito. Mesmo assim, por pressão da esposa, ele incluiu o nome dela entre os acionistas da Market & Market, o que lhe rendia algum dinheiro mensalmente.

Gisele havia se mudado para Glésgou junto com Pedro, o namorado maconheiro, há sete anos. Conheceram-se na faculdade, no qual ambos partilhavam o mesmo interesse: serem desinteressados. Após alguns meses regados a muito sexo, drogas, bebidas e brigas com a família da moça, os dois decidiram, romanticamente, deixar a capital e tentar a vida em outra cidade. A formatura poderia esperar, o amor não. Assim, contra tudo e contra todos, os pombinhos pegaram o expresso da paixão e seguiram para o município mais escocês do Brasil, ao menos no nome.

Mas, diferente da Escócia, em Glésgou eram as mulheres que usavam saias. E havia MUITOS rabos-de-saia que enlouqueciam Pedro. Um, em especial, que ele se lembraria pelo resto da vida, era o de Lílian, uma mulata funkeira bem conhecida. Não era a mais bonita que o garoto já havia experimentado na cidade, mas ela é quem estava lhe dando uma bela chupada no estúdio da Rádio G, onde o casal fazia parte da programação, quando Gisele chegara de surpresa, para lhe trazer alguns brownies especiais no dia de seu aniversário, apenas cinco meses após terem se mudado. Problemas técnicos tomaram conta da rádio, ficando inativa por dois dias, tempo suficiente para os equipamentos danificados estarem novamente em condições de uso. Já o casal de locutores saiu do ar definitivamente na vida conjugal, ficando Gisele com a casa, Pedro com os brownies e Lílian com um olho roxo e fama de boqueteira.

Após pegar o companheiro no flagra e o caso ganhar repercussão, a ex-futura-bacharel de direito, recebia emails e telefonemas de mulheres se solidarizando com o ocorrido. Claro, talvez as fãs não soubessem que ela e Pedro tiveram e tinham inúmeros flashbacks após o ocorrido (um deles 42 minutos depois da briga na rádio), mas sentir-se querida fazia bem para seu ego. Ela já havia superado a traição, já tinha perdoado seu agora ex-namorado e, apesar de ser uma rádio comunitária, a G lhe dava a fama que sempre sonhou. E não dependia mais de seu pai (quando se desconsiderava que os dividendos da empresa da família eram cerca de 70% de sua renda, é claro).

Curiosamente, a traição parecia ter sido uma benção para Gisele. Tanto que, meses depois, em meio às leituras de Marx e Engels, abriria um diretório do PCN, Partido Comunista Nacional, e lançaria em seu programa de variedades na G a sua pré-candidatura à vereadora.

Com discursos inflamados exaltando as maravilhas do comunismo, carregados de verborragia, propostas para uma distribuição justa de recursos para os mais desfavorecidos e pesadas críticas aos empreendedores da cidade e aos mais abonados, taxados de egoístas, Gisele foi eleita com a segunda maior votação da cidade, além de ser a vereadora mais jovem a tomar posse, com apenas 22 anos. Uma líder para o futuro.

Apesar do repúdio ao dinheiro alheio, a garota gastou com a campanha cerca de 250 mil reais, entre recursos próprios e oriundos de doações e do fundo partidário. Outros 50 mil vieram de forma indireta, por intermédio de Pedro, que, além de trabalhar na rádio, fazia parte de um comércio paralelo de venda de maconha. Nunca antes na história de Glésgou tantos baseados foram fechados na semana que antecedia um pleito. Após a eleição da sua ex, tornou-se o principal ponto de tráfico na cidade. Pelo menos era, até a última semana.

Embora não expusesse o fato, a vereadora não via mal algum em ter sua campanha parcialmente financiada pelo tráfico. Convencia-se que as pessoas se sujeitavam a este tipo de emprego por não terem oportunidades neste mundo-cão em que vivemos. E, segundo seus conhecimentos, maconha não matava, era apenas uma recreação sadia. De fato, mesmo os delitos mais graves eram culpa do capitalismo predatório, pois certos bens estavam apenas ao alcance dos ricos e poderosos, e estes pseudo-crimes eram apenas a maneira que os oprimidos tinham de extravasar contra a sociedade.

Estes pensamentos eram sempre os últimos do dia, o que permitia, noite após noite, que ela deslizasse para a terra dos sonhos em sua cama king-size, envolta em lençóis de cetim, na cobertura do edifício Santelmo, o maior da região.

2

A farmácia Mundo Novo abria 24 horas, ainda que nesta noite Glésgou fosse como um cenário vivo de filmes de faroeste. Bruna também pensava isto, mas quando a oportunidade de trabalhar à noite surgiu ela não hesitara em aceitar. Era um pouco perigoso, claro, mas o adicional salarial compensaria quaisquer possíveis transtornos. E ela não ficaria sozinha, pois teria a companhia de Robson, segurança particular, seu ex-colega de escola, por quem ela sempre tivera uma quedinha.

Estavam no trabalho há cinco horas e a farmácia recebera exatamente doze clientes, sete eram adolescentes buscando camisinhas. Bruna e Robson tinham muito tempo para si, e com a chuva que caia era ainda mais improvável que qualquer outra viva'lma aparecesse antes da virada do turno.

A balconista era do tipo independente, e, como seu protetor não tomava iniciativa, ela achou que deveria ir até ele, jogar um charminho ou, em último caso, beijá-lo de surpresa. Vê-lo de farda a deixou ainda mais excitada.

Chegou próximo a porta de entrada, onde ele se encontrava, chamando sua atenção, com o seu sorriso de covinhas. Robson era casado havia alguns meses, mas nunca fora adepto da monogamia, e ver o olhar e o sorriso de Bruna automaticamente lhe fez pensar em alguma desculpa para chegar tarde em casa, pois sua colega certamente iria querer fazer algumas horas extras a serem pagas imediatamente, de um jeito não convencional.

Absorvido por seus pensamentos e sua tara, não chegou a trocar sequer uma palavra com Bruna: um clique seco e uma ordem para não se mexer, literalmente, o paralisou.

3

Henrique saíra da FASE a 2 semanas. Esteve preso pelos últimos 6 meses, por furto. A primeira coisa que fez ao sair foi conseguir uma arma com um velho conhecido e depois fumar toda a maconha que pudesse em uma noite, para tirar o atraso do último semestre. Artigo de luxo, no momento.

Completara 18 anos, não poderia arriscar falha em um crime novamente, iria direto para a cadeia, mas não sabia fazer outra coisa senão assaltar, fechar baseados e se chapar, ainda que sua família tivesse lhe dado condições iguais as que deu a seu irmão Érick, recém formado ginecologista.

Seu velho conhecido Marcos, também ex-detento da FASE, além de lhe vender a pistola que estava portando, ainda lhe indicou um ótimo alvo para um assalto: a farmácia Mundo Novo. Na verdade, poderiam atuar juntos em um assalto, já que Henrique estava interessado em grana e Marcos em medicamentos que poderiam dar um barato legal, na falta de erva boa.

Foi Henrique quem rendeu Robson, e seu comparsa, portando um potente .38, o desmaiou com uma coronhada. Antes que Bruna tomasse ciência do que ocorria e pudesse gritar a mira do revólver de Marcos, juntamente com seu olhar intimidador, já estava a encarando. Foi o suficiente para que ela perdesse os sentidos logo após molhar as calças brancas. A dupla de marginais nunca tivera tanta sorte. Nem precisariam das meias-calças no rosto se soubessem.

Quando Lílian chegou a farmácia às 7h encontrou a balconista e o segurança ainda desacordados e discou 190. Foram roubados R$128,90 do caixa, todo o estoque de Prozac e Lexotan, carteiras e celulares dos dois funcionários e uma caixa de Viagra.

Ao tomarem nota, o roubo do Viagra foi o ítem mais especulado pelos policiais. Sorte de Bruna que ninguém notara a mancha no gancho das calças.

A DefensoraWhere stories live. Discover now