CAPÍTULO 5

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1

Passava das 4 horas de uma tarde de tempo instável quando a neta e a bisneta de Dona Miguelina, 86 anos, chegaram à sua casa para uma visita. No caminho, mãe e filha passaram por um velho Del Rey parado no acostamento, mas seguiram viagem. Nos dias de hoje, tudo pode ser golpe, assim pensava Esther, a mãe.

Fazia quase um ano que não visitava a avó. Na última vez Kimberly, a filha, ainda não havia aprendido a ler, agora já devorava gibis e livros infantis, e queria contar a novidade à bisa.

Pretendiam passar alguns dias, já que Esther havia finalmente se separado e o contato com o campo (Dona Miguelina morava na zona rural de Glésgou) seria benéfico para reorganizar suas ideias.

Chegar à casa da avó e não encontrá-la a deixou um tanto preocupada, pois avisara sobre a visita com antecedência. Decidira perguntar aos vizinhos mais próximos se, por acaso, não a viram, mas as respostas variaram entre "sim, ontem" e "não", o que levou a já preocupada Esther a procurá-la pela região, nos locais que Miguelina mais frequentava.

Escolheu como ponto de partida o Mercadinho Borges, à cinco quarteirões da casa da avó. E, desde então, todas as noites ela agradece à Deus por ter deixado Kimberly no carro, lendo, pois a cena que viu lhe tiraria o sono por um geração. Basta que as luzes se apaguem para que Esther reveja Seu Borges morto, com a boca aberta, olhos esbugalhados, jogado no chão, sem a parte de cima da cabeça, em meio a geleia, vidros e sangue.

Tomou, na verdade, um duplo susto, pois no mesmo instante que se viu naquele horrível cenário, levando uma das mãos à boca sufocando um grito, seu celular tocara. Não conseguiu conter um novo berro desta vez, chamando a atenção da filha, que sorria ao ler as aventuras de Mickey Mouse.

Fez sinal para a menina não descer do carro, e atendeu o telefone. Era a avó, pedindo mil e um perdões. Ela se atrasara no bingo da igreja, mas agora já estava em casa esperando por elas, com uma torta de maçã. Esther agradeceu, e disse que logo chegaria. Nada falou sobre o crime e, muito menos, que nunca mais comeria maçãs.
Desligou e, antes de voltar ao carro, discou 190. Um certo Eduardo lhe atendeu.

2

O Del Rey ia em alta velocidade, saíra da estrada de terra e pegara a rodovia Leonel Brizola, rumo à São João, por onde passava o plano de Marcos.

Há mais de cinco minutos nenhuma palavra era trocada. As lágrimas de Gisele já haviam secado, mas sua maquiagem estava terrível. Ela abriu o porta-luvas e encontrou um pedaço de estopa, juntamente com um Auri Shine genérico. Teriam de servir para retirar a base e o rímel.

- Puxa, este cheiro de maçã está me sufocando!

- Eu também Gi, mas devo ter roupas limpas no Morro. Há tempo não vou lá, fica bem isolado, é onde costumo dar umas festinhas.

- Sei... [disse Gisele, distraidamente]

- Minha roupa está acabada, minha barriga, minhas costas e minha cabeça estão doendo pra caralho, sou procurado por assalto, sequestro e homicídio. Que bela merda, não?! [Marcos soava irritado, talvez à beira do desespero]

- Calma. [A garota passou a mão no rosto do sequestrador, do lado direito que começava a inchar] Vai dar tudo certo. Vou dizer que você me tratou bem, que só estava com medo de ir preso, não fez mal a ninguém...

- E o quê?! Vai confessar que matou o velho?!

Gisele avermelhou-se. Tentava ser otimista, mas era difícil imaginar um cenário que não fosse prejudicial a algum deles. Procurava não pensar em Borges, e tentava confiar em Marcos, uma vez que tinha lhe salvo a vida, mas talvez a trilha de merda com odor cítrico que deixaram, numa espécie de Assassinos Por Natureza tipo B, não a deixava esquecer.

- Eu... eu tenho uma solução! [Uma voz timida viera do banco traseiro, onde, em uma espiadela rápida, Marcos nada vira]

O carro ziguezagueou na pista. Marcos não se lembrava de ter tomado tantos sustos em um mesmo dia. Um caminhão, por sorte em velocidade baixa, desviou por pouco do velho Del Rey que vinha na contramão, guinchando pneus e, em seguida, esganando a buzina.

Finalmente o carro parou no acostamento. Gisele levou as mãos à cabeça e constatou que um galo havia se formado do lado direito, onde batera contra o vidro. Respirando rápido, de olhos fechados, balançando a cabeça muito zonzo, Marcos tentou sacar o .38, mas o derrubou no assoalho do veículo. Tendo feito tanto esforço em tão pouco tempo, quase perdera os sentido, cambaleando para a frente, mas a batida da testa no centro do volante o impediu de cair no sono. No banco de trás, com muita dificuldade Henrique sentava-se no espaço do meio, segurando o revólver de Marcos sem ameaçá-los, e começara a falar rapidamente, numa torrente contínua de palavras, exatamente quando passava uma Land Rover com uma mãe e uma filha, que iam para Glésgou visitar uma velha senhora. As dores de cabeça de Marcos e Gisele pioravam à medida que o garoto falava seu monólogo, mas, quando ele terminou, os três sentiam-se melhor.

4

A cena no mercadinho era terrível. Há algum tempo Barroso não via algo tão grotesco, principalmente na então pacata Glésgou.

A perícia tirava fotos no local, felizmente os moradores das zonas rurais não eram tão curiosos como os do centro, de modo que poucas pessoas estavam presentes querendo testemunhar aquele espetáculo mórbido.

O carro de Gisele estava parado no estacionamento. Provavelmente pararam alí para trocar de carro e o velho Borges notou, e então decidiram eliminar a testemunha, assim concluiu. Agora, Marcos já não era apenas um sequestrador, mas um assassino! Tinha de pará-lo! Tinha de alcançá-lo antes que uma trilha de cruzes seja deixada em seu caminho de fuga. A sugestão que Eduardo lhe dera era uma opção, mas precisavam executá-la imediatamente. Mais vidas estavam em jogo, e, apesar de não gostar nem um pouco da vereadora, tinha de salvá-la, se ela ainda estivesse viva. Pelo menos, é o que Barroso pensaria até, mais ou menos, o pôr-do-sol.

5

O plano não poderia ser mais simples: seguiriam o que Marcos traçara, e Henrique assumiria o assassinato de Borges. Em troca, Gisele lhe daria uma quantidade de dinheiro suficiente para ele começar uma vida nova, trocar identidade e nunca mais pisar no Rio. Iria, à princípio, com Marcos para a Argentina, e, de lá, com a grana que Gisele lhe daria e após trocar de nome, regressaria ao Brasil, mas bem longe de Glésgou.

Talvez até tentasse uma vida honesta, após a turbulência, assim ele disse. mas nem Gi, nem Marcos acreditaram nisto, ainda que não expuseram.

Evidentemente que a história tinha furos gigantescos, mas, pela própria experiência, Marcos sabia que, quanto menos evidências de fraude, mais se investiga um caso. E, de todo modo, mentalmente planejava se livrar do rapaz mesmo. Nada teria a perder.

A DefensoraOnde histórias criam vida. Descubra agora