CAPÍTULO 2

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1

Após a tempestade da última noite o Sol, timidamente, dava as caras. Às 9:45 o despertador tirou Gisele de seu sono. Nua, dirigiu-se ao banheiro enquanto ligava seu rádio e sintonizava a G. Tinha por hábito ouvir ao Glésgou Urgente, policialesco da emissora, enquanto tomava seu banho matinal.

A notícia sobre o assalto à Mundo Novo não passou despercebida, já que era lá que Lílian, a boqueteira, trabalhava. Gisele sorria enquanto enxaguava os cabelos, imaginando se a garota ficara tão apavorada quanto aquele dia no estúdio.

Após a ducha, ainda de roupão, na mesa do café, o telefone tocava. Era Henrique Costa, um de seus mais notórios eleitores.

- Gisa? É você?

- Sim, que é que manda? Tudo certo?

- Nada certo! Me prenderam! Você tem que me ajudar Gisele! Não quero ser preso! Vão comer meu cu e...

- Ei, ei, ei! [Gisele interrompia] Que merda você andou fazendo cara?! Não saiu da FASE há pouco tempo?

- Ahn... sim, mas...

- Parece que nunca aprende e... [Ao olhar para o rádio ela teve uma luz] Foi você que roubou a Mundo Novo?

- NÃO! [esbravejou Henrique, com a voz tremulando. Não sabia mentir.] Acabei, ahn, tipo, meio que exagerando no cigarro...

- Ok! [interrompia novamente] Me aguarda aí. Mas não faz nenhuma merda! Aliás, nenhuma OUTRA merda! Fecha este bico.

- Mas... eles vão me levar e...

- Fique frio, caralho!

Desligou, poupando-se de ouvir os protestos de Henrique. Gostava do garoto, apesar da família burguesa. Tinha uma turma de amigos que lhe rendia uma boa quantidade de votos, a maioria em comum com Pedro, mas já estava cansada das bobagens dele. Talvez pudesse livrá-lo, já havia reduzido sua pena na FASE para menos da metade, ele já lhe devia muitos favores, mas precisava dele e dos amigos para manter-se na câmara. Além disto, achava-o muito atraente, principalmente por seus cabelos longos e sedosos...

Pensar nisto a fez sair da mesa e se arrumar rapidamente. Afinal, com toda a beleza que tinha, era mesmo capaz de algum bandidão comer a bunda de Henrique.

2

Marcos, seu motorista particular, veio assim que ela o telefonou. Nem havia dormido na última noite, mas não podia negar serviço. Aliás, não podia negar nada a Gisele. Ela livrara sua pele uma dúzia de vezes e, quando não havia como ser liberado, ela garantiu uma pena bem menor do que a inicial, além de conseguir um emprego que, se não pagava bem, pelo menos servia de fachada para justificar seus ganhos. Estaria em débito com ela pelos próximos 90 anos.

Nervoso com a notícia do assalto à farmácia e irritado com demora da chefa, bastou que a visse para que radicalmente seus sentimentos mudassem: Gisele estava belíssima! Usava um vestido curto com botas de couro que lhe davam uma aura de poder. O decote avolumava seus seios e o corte valorizava suas curvas. Usava os cabelos presos em um rabo de cavalo, lembrando o rosto e o estilo que tinha quando menina, contrastando com os óculos de armação simples, que lhe rendiam um ar mais adulto.

O motivo de seu amigo Pedro ter traído Gisele com Lílian, uma vagabunda de, no mínimo, quinquagésima mão, era algo além de sua compreensão. Tivesse ele sido o escolhido da vereadora jamais iria tê-la traído. Não com uma baranga, pelo menos. Mas ele sabia que Gisele estava além de sua alçada. Era mulher para caras ricos, por isto sequer cogitava investir. Talvez o dia que seu mercado paralelo lhe render mais do que alguns trocados, pensava.

- Toca para a delegacia. O Henrique fez merda de novo. [ela o trouxe à realidade]

- Puta merda! Eu falei para ele maneirar.

E então, enquanto acelerava, o medo o invadiu. Esperava que Henrique não tivesse dado com a língua nos dentes e o entregado. Marcos estava indo direto para a boca do Inferno! Aquele moleque saiu tão chapado, após torrar a grana toda comprando erva no Clóvis (ruim como bosta de cavalo, mas a única disponível em Glésgou no momento), que era bem capaz da noia ainda não ter passado. Marcos jurou não voltar ao presídio, seu rabo sabia bem o motivo, e levou a mão dentro do blazer imediatamente, certificando-se de ter trazido seu melhor amigo. Se as coisas apertassem, ele faria-o gritar.

3

Nuvens encobriam o céu de Glésgou no instante em que Gisele entrava na sala do Delegado Barroso. Barroso não simpatizava com a garota, a taxava de 'defensora de vagabundos', mas, como em quase toda cidade pequena, tinha alguém empregado no serviço público. Seu filho Maicon tinha um cargo em comissão na câmara, portanto seria melhor evitar qualquer discussão com a garota. Não sabia até onde ia sua influência, mas, ao vê-la naquele vestido, desconfiava que ia longe.

Henrique chorava no xilindró, ainda algemado. Não era do tipo que ofereceria risco, mas não se pode confiar em alguém sob efeito de drogas. Além disto, Barroso conhecia o pai do garoto, que decidira, após inúmeras passagens do filho pela FASE, não envolver-se mais.

- Delegado, por gentileza, por que o garoto foi preso?

- Bom dia, para você também, vereadora [respondia Barroso, um tanto seco]. Nada demais, apenas estava portando um pouco de erva, o que, por coincidência, é crime em nosso país.

- Crime? Mas era para uso próprio! Ele precisa de tratamento...

- Ele portava 100g, vereadora. Quem garante que ele não iria vender? Já pegamos ele vendendo há um tempo atrás, lembra? A sorte dele é que faltavam duas semanas para completar 18 anos e teve de ser encaminhado à FASE! Quando, um tempo depois, estouramos aquela boca-de-fumo [Em que seu namorado foi detido, pensou em acrescentar, mas ficou subentendido. Ele apenas queria não parecer negligente, não precisava aventurar-se mais que isto], se ele estivesse livre certamente estaria envolvido. Poderia estar no presídio agora. Ou no campo santo!

- Você se orgulha disto, não? Como consegue dormir a noite com tantas almas que capturou?!

- [ia lhe perguntar o mesmo!] Afinal, o que você quer, Gisele? Está tomando meu tempo.

- Que o senhor trate o meu amigo como gente! Não como um animal, nem como um criminoso! Ele não tem culpa da sociedade em que vive o colocar à margem e...

- Blá, blá, blá... tudo isto eu já ouvi umas cinquenta vezes, vereadora. Ele É um delinquente, e já não é mais criança.

- Não roubou de ninguém, roubou? O que ele faz com si próprio não nos diz respeito. Além do mais [Gisele sorria cinicamente] ele é réu primário. Legalmente, não possui ficha criminal alguma. E a posse de drogas, ainda mais para uso próprio, não é crime hediondo e inafiançável.

Sentindo um calor cobrir a face, Barroso respondeu:

- Réu primário? Você sabe todas as vezes em que ele foi e voltou da FASE melhor do que ninguém!

- Ele não pode pagar a vida toda por erros que cometeu sendo criança.

Vendo que não adiantaria discutir, já que a garota seguiria apontando apenas o que lhe convinha, o delegado deu um veredicto:

- Tudo bem. Vamos ignorar que esta prisão foi flagrante, ok? Ele terá direito a um advogado e aguardará o julgamento em liberdade... desde que seja paga uma fiança de, digamos, 800 reais?

Gisele mentalmente chamou a mãe do delegado de puta, também dando o mesmo adjetivo à mãe de Henrique para, em seguida, comprimindo os lábios, lembrar que, na pressa, deixou a bolsa no carro. Após um longo suspiro, tirou do bolso o seu smartphone e mandou uma mensagem no Whatsapp de Marcos, solicitando que ele lhe traga o que ela esquecera no banco traseiro, pois precisava do talão de cheques para pagar ao Filho-da-puta número 1, a fim de que soltasse o Filho-da-puta número 2.

Marcos confirmou o recebimento da mensagem e dirigiu-se para dentro da delegacia, ainda temeroso, porém mais confiante. A coisa se resolvera fácil, afinal. Ele não imaginaria que Robson e Bruna, em dois minutos, estariam no balcão da DP prestando queixa. Muito menos que Henrique não tivesse por hábito trocar de roupas após um assalto.

A DefensoraNơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ