prólogo

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LUKE HEMMINGS

Todos estamos condenados a morrer, mas poucos estamos condenados a viver.
Talvez devesse escrever um livro e começar o primeiro capítulo com esta frase. Em poucas semanas seria recorde de vendas e ia acabar por ser autor de um livro com umas vigésimas edições impressas.
Porque é isso que as pessoas querem e a indústria procura: livros bonitos com frases elaboradas, extremamente adjetivadas e profundas que mostrem aos leitores que não estão sozinhos no seu mundo de depressão, ódio e tristeza sem fim. Porque é isso que toda a gente acha que o Mundo precisa; frases bonitas, com uns adjetivos tirados do dicionário à pressa e com muito romance e sentimento à mistura. É disso que o Mundo é feito, afinal: de frases. A frase certa dita ao nosso amado pode proporcionar-nos um pedido de casamento, a frase certa escrita numa pergunta importante de um teste pode dar-nos acesso à nota máxima e um final arrebatador de um livro pode dar-nos acesso a um Mundo infinito de dinheiro e a uma quantidade infinita de fãs dedicados.
E são o tipo de pessoas que comprariam o meu livro com frases profundas que, todos os dias, passam por mim na rua e me olham. Não me olham com surpresa e interesse porque sou atraente, porque sou um autor reconhecido mundialmente ou porque tenho uma tatuagem obscena na testa; na realidade, os três aspectos que mencionei estão errados e não estão presentes na minha pessoa.
As pessoas olham-me, mas mal sabem que eu faço muito mais do que as olhar de volta.

Cada um de nós tem uma ideia de si próprio. A pessoa que achamos que somos é a pessoa que somos às 17 horas, quando estamos a beber um café com os amigos, o sol está a pôr-se e tudo é perfeito, bonito e intocável; e depois há a outra ideia que recusamos aceitar, mas que é a mais verdadeira. O que nos define realmente como pessoas são as dificuldades que passamos às 5 horas da manhã e estamos sozinhos, por nossa conta. É esse momento, e apenas esse momento de dor que nos define como pessoas. É disso que somos feitos. Não de pó de estrelas, como tantos poetas adoram aclamar, mas sim de desespero, de podridão, de dor.

É o desespero que nos define.

Há 17 anos que sei o que é o desespero. Não o desespero temporário por uma situação infantil e ridícula; o desespero que eu conheço devora-me por dentro e deixa-me num beco sem saída, mesmo que esteja rodeado de estradas e caminhos alternativos à minha volta. Não consigo escapar-lhe, evitá-lo ou expulsá-lo do meu corpo. Faz parte de mim. Define-me.

As pessoas continuam a passar e eu continuo a beber o café barato que comprei, encostado à parede vandalizada e destruída atrás de mim. Ao fitarem a minha figura negra, estas pensam que me analisam, mas na realidade quem as acaba por analisar sou eu. Seja pelos seus olhares de pena, seja pelos seus olhares embaraçados ou pelos seus olhares revoltados, eu consigo analisá-los.
E chego à mesma conclusão para todos eles: somos todos vazios. 

Somos um nada.

Longe dos meus olhares desconfiados e analisadores, um casal beija-se. Podia dizer que aquilo era mesmo paixão se soubesse distinguir paixão de fingimento; infelizmente, é das poucas características que não possuo. Distinguir paixão de fingimento é complicado quando nem sequer sabemos o que é realmente paixão mas estamos muito familiarizados com fingimento. As verdadeiras demonstrações de amor são feitas entre quatro paredes longe dos olhares curiosos de outras pessoas. As demonstrações de amor são feitas nos piores momentos, não nos melhores. E, quando paramos para pensar, percebemos que, em toda a nossa vida, recebemos pouquíssimas demonstrações de amor verdadeiras.
Lembro-me de outra coisa ao avistar a troca de saliva entre o casal. As pessoas costumam lembrar-se sempre do primeiro beijo. As mesmas pessoas que acham o primeiro beijo um dos momentos mais importantes da vida do ser humano são o mesmo tipo de pessoas que comprariam o meu livro cliché e fingido. Afinal, na sociedade de hoje, um primeiro beijo é um acontecimento quase histórico. Dás o teu primeiro beijo assim que nasces? Bom, não o devias ter feito tão cedo. O que é que as outras pessoas vão achar? Um dia vais arrepender-te de o ter feito. Dás o teu primeiro beijo aos 40 anos? Oh, então mas o que esperas da vida? Morrer sozinho? Tens medo de mulheres? Ou estás mais virado para os homens? Não há problema se estiveres. Nós amamos-te à mesma. 

Somos quase obrigados a lembrar-nos do nosso primeiro beijo. É quase como se isso nos definisse como ser humano pensante, é quase como se a pessoa que somos dependesse do primeiro contacto que temos com os lábios de outrem.
Eu lembro-me da primeira vez que levei uma tareia com um taco de basebol. Isso define-me como pessoa? 

Sim. Define.

Todos temos a nossa história. Seja ela a história de como conhecemos o pai dos nossos filhos, a história de como conseguimos entrar na universidade ou a história do nosso primeiro beijo, todos temos a nossa história. Mais sofrida, menos sofrida, mais feliz, mais infeliz, é a nossa história.
E todos nos identificamos com a história de outro alguém. 

Menos eu. 

Como é possível alguém saber pelo que já passei? Como é possível saberem o que eu já vi, o que já sofri ou já senti na pele? Como é possível alguém dizer "já passei pelo mesmo"? A dor não é uma competição. A dor não é como uma corrida. Não é suposto dar mais abraços a quem sofre mais e ignorar a dor do que tem a vida mais facilitada.

É agora que me lembro que provavelmente já ouviste a minha história milhões de vezes. Talvez, na altura em que digo isto, já me tenha tornado famoso mundialmente e a minha história já esteja em cada jornal, em cada revista, na mente de cada pessoa. Talvez seja por isso que as pessoas me olham na rua.

Mas há algo de que eu tenho a certeza.

Mesmo que perguntes,
mesmo que questiones,
mesmo que interrogues,
mesmo que me ouças,
Não estás realmente a escutar,
a sentir,
a ver. 

Estás apenas à tua espera da tua vez para falar.

Se calhar já não te lembras da minha história. Se calhar morri sem que esta fosse publicada, lida, escrita. Entendida. Se calhar isto é apenas uma carta que estás a encontrar ao lado do meu corpo sem vida. Ou talvez seja um grito de ajuda deixado na tua secretária.

A realidade da minha história é apenas uma. Não caminhaste pelo mesmo caminho que eu. Não pisaste as mesmas pedras que eu. Nunca viste o que eu vi, sentiste o que eu senti ou gritaste tanto como eu gritei. Nunca foste tão pisado, queimado ou usado como eu.

O meu passado define-me.

Isto é quem eu sou.
Invisível,
Implacável,
Excessivo,
Obsessivo,
Magoado,
Indesejável.
Isto é o que eu realmente sou;

se é que sou alguma coisa.

Chamo-me Luke Hemmings.

E esta é a minha história.

Desculpem.

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