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A dor passou. Estou acordada mas não quero abrir os olhos, sinto os demasiado sensíveis à luz.
Devo estar no meu quarto. Conheço este cheiro familiar. Cheira a casa.
Oiço alguém a fechar as cortinas. Abro os olhos devagar e observo alguém sentado à beira da minha cama.
Cabelo curto pelos ombros, loiro e liso e uma franja direita sobre as sobrancelhas. Pele ligeiramente morena e olhos castanhos esverdeados. Kate.
-Estás bem? - pergunta me.
Sento me e sinto uma pequena tontura. Encosto me à cabeceira da cama e olho para ela.
-Acho que sim. Esquisita mas bem.
Ela está a olhar para as mãos e vejo que se culpa por me ter deixado sozinha no prado.
-Kate... - digo pousando a minha mão sobre a dela - a culpa não foi tua.
Olha para a minha mão com os olhos muito arregalados e diz.
-Estás tão fria! Sentes te mesmo bem?
-Sim... A verdade é que não sei.
Abraço a e ficamos assim algum tempo. O cheiro a sangue fica intenso e tenho de me afastar.
Tenho fome.
A minha mãe entra com uma bandeja com comida e pousa na minha mesa de cabeceira. Tem dois copos de sumo de laranja, dois croissants com fiambre e algumas fatias de bolo de maçã e canela. Parece que me leu os pensamentos.
-Obrigada, mãe.
Sorriu e beijou me a testa saindo depois do quarto.
Kate ataca logo um croissant e uma fatia de bolo. É o nosso bolo favorito. Faço o mesmo e vou bebendo o sumo.
-Estiveste desaparecida dois dias, Mia. - diz Kate sem nunca desviar o olhar do copo de sumo que segura entre as suas mãos magras.
Dois dias?! Pensava que tinha sido só uma noite!
-Ligá mos para a polícia mas disseram que era muito cedo para te darem como desaparecida. - continua ela - tive medo que não voltasses.
Está a morder o interior da bochecha, consigo perceber. Ela só faz isto quando está a tentar não chorar.
-Kate está tudo bem.
Acabei agora de comer o último bocado de bolo. Por momentos parece que a fome desaparece mas sinto o meu estômago a queixar se. Eu continuo com fome.
Kate sorri ligeiramente e pede desculpa de novo e eu digo lhe mais uma vez que não foi culpa dela.
Quando se vai a levantar deixa cair o seu copo e este parte se no chão.
-Não faz mal. Eu ajudo te. - digo começando a levantar me.
-Deixa te estar a descansar, eu consigo limpar isto sozinha.
Encosto me de novo. Olho para o relógio. Já anoiteceu.
Oiço um gemido de dor e olho para Kate. Está debruçada sobre a sua mão que está a sangrar. Sangue.
-Só me cortei num vidro. Estou bem.
Levanta se e dirige se à casa de banho para tratar do corte deixando me sozinha no quarto, com a boca seca, esfomeada, e com o cheiro a sangue mais intenso no ar.
O vidro onde ela se cortou está no chão, ao lado da minha cama e ainda tem um pouco do seu sangue.
A minha visão está fixada naquela pequena mancha vermelha.
Quando dou por mim tenho o vidro na mão. Lentamente aproximo o da minha boca e passo na minha lingua.
Fecho os olhos e aprecio o sabor metálico na minha boca. É tão... delicioso.
Largo o vidro e recuo assustada quando me apercebo o que é que estou a fazer. Bato com as costas na parede mas a dor só dura uns segundos.
A minha mãe entra no quarto e relaxa quando vê que foi só um copo que se partiu. Pergunta me se estou bem e digo lhe que sim e tento acalmar me.
Kate aparece de novo no quarto e ajuda a minha mãe. Despede se de mim e diz que volta amanhã.
Quando fico sozinha, levanto me e vou encher a banheira para um banho bem quente.
Enquanto espero que a banheira encha olho me ao espelho. Os meus olhos azuis estão cansados e o meu cabelo negro despenteado. Tenho uma marca no meu pescoço. Não passam de duas manchinhas vermelhas e não se percebe bem o que é. As feridas e os arranhões desapareceram e reparo que a minha pele está mais pálida. Muito mais pálida.
Entro na banheira e fecho os olhos. A água quente cobre me o corpo até ao pescoço.
Porque é que não me lembro de nada daqueles dois dias?
O que se passa comigo? Sinto me esquisita, diferente e isto assusta me.
Eu provei sangue. E acho que gostei.

Mordida pelas SombrasWhere stories live. Discover now