CAPÍTULO III

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Eu tenho questionamentos, mas quem não os tem quando somos cartas jogadas ao léu? Eu rio e gargalho, conheço de coisas do mundo e escrevo minhas maiores dores, ciente de que posso sentir os mundos pulsarem em meu coração; nada é tão grande mistério a não ser que ignore isso. Aceitar sentir tanto é uma grande e poética maldição, cuja bênção reside em saber como se tivesse algum tipo de controle sobre, sem nunca tê-lo de fato. Estabelecemos alguns limites, mas nunca somos suficientes para isso. Às vezes, a dor reside nisso: na incapacidade de ter controle. Muitas coisas doem e sabê-las é uma delas.

Por isso, criamos. Somos escolhidos por alguém com demasiado mau senso e bom humor, enquanto jogamos o xadrez de deuses que nos espreitam por ébria diversão. Eu continuo nesses passos tortuosos e vejo almas que passam por mim. Pressinto suas dores e suas agonias como se minhas fossem e choro suas lamúrias e tragédias com meu próprio lamento. Mas elas passam. Eu fico. Eu conto sobre elas, sem nunca as conhecer de fato. E eu escrevo e desenho suas almas e seus sentimentos, porque somos dor, alegria, pranto e felicidade.

Somos o conglomerado de coisas boas e ruins, coisas que céu e inferno sempre nos sussurram nos sonhos, mas que sempre esquecemos, talvez para que possamos continuar tendo alguma esperança. Eu risco nomes e aventuras anônimas, como eu, pelos mais diversos lugares, pelas mais obscuras savanas, porque consigo senti-las todas. E há alguma força que acompanha meus passos, essa minha insistência em lembrar e desejar e sentir; esse algo dentro de mim que anseia e luta e sonha.

Eu estou ali; eu permaneço ali.

Eu fico. E as palavras desenham mundos que nunca chegarei a conhecer, mas se estendem por minha alma aberta e quase sombria de temores. Não nos perguntam o que queremos, quem somos ou porquê estamos. Mas eis que, num momento, descobrimos. Passamos a ser. Aceitamos ser. E algumas coisas deixam que esse fardo pese, exista e resista em nossas peles manchadas pelos sentires do mundo.

Ninguém os vê; mas sempre estão ali.

***

Quando eu chego à aula de literatura, faltam alguns longos minutos para que ela comece. A professora está ali, diante de sua mesa, entretida com alguns papéis que não ouso decifrar. Aproveito os minutos e observo os poemas, as obras e os símbolos que emolduram aquelas paredes de poesia e perdição. Sua voz me sobressalta e peço desculpas pelo incômodo.

– Não se preocupe, gostaria de falar com você sobre alguns textos que me entregou; ia chamá-la para uma conversa a sós, mas podemos fazer isso agora; tudo bem para você?

Eu assinto e me aproximo. A Srtª Aberdeen me oferece uma cadeira à sua frente e sorri com sua serenidade quase sombria. Existe esse algo peculiar em algumas almas perdidas; elas têm a mesma sintonia e, quando a olho, sei que é uma delas. Os cabelos longos e negros se rendem a uma prisão sobre o topo da cabeça, recaindo sobre seus olhos acinzentados.

Como eu, gosta da retratação romântica da literatura e suas vestes escuras e vestidos longos a fazem uma figura austera e distante. Ela apoia os cotovelos sobre a mesa e me escara os olhos com o tom de seriedade e força. Sinto que lê minha alma, mas tem dúvidas do que vê; então prossegue com sua fala.

– Tenho visto e acompanhado sua trajetória há alguns anos nessa escola e não me foi demasiada surpresa reconhecer em você um talento além com as palavras; algumas pessoas têm habilidades especiais não condecoradas pelo mundo e você precisa estar atenta para reconhecê-las. Um dos motivos que me fazem sentar diante de dúzias de vocês todos os dias. – Ela afastou o olhar e o passou pela sala; havia apenas uma garota sentada ao fundo, com grandes fones de ouvidos cujo som era possível perceber mesmo distante. – Ela suspirou e voltou a mim. – Sei que não ainda tem um pouco de constrangimento sobre você mesma. Não, não precisa negar ou confirmar algo para mim. Há anos estudo literatura e sei reconhecer olhos que estão além de seu tempo. Não sei suas pretensões ou seus desejos, mas o que quero lhe oferecer é bem simples: quero que seja monitora da disciplina algumas vezes por semana, como for melhor para si.

Ela jogou algumas mechas para trás das orelhas pálidas e tocou um anel em seu dedo, declarando com uma voz embargada e firme que escondia alguns sentimentos e algumas histórias que'u bem poderia nunca conhecer. – Essa profissão me possibilitou conhecer mais de mim mesma e por razões que desconhece, me fazem quem sou hoje. Temos histórias tristes, onde quer que nossos pés pisem e, sejam quais forem as terras em que nossos corações encontrem abrigo, sempre teremos tormentos que nos farão quem somos. Não quero que pense que a dor é algo tão bom que deva ser sentido como se fosse resolver tudo; mas quero que saiba que o que quer que haja dentro de nós, estar em estilhaços pode ser algo que nos construirá; que nos fará quem somos.

Ela tomou minhas mãos. – Pense nisso. Não tenha tanta pressa, mas também não me esqueça de dar uma resposta. Temos algum tempo, mas é sempre pouco demais para menosprezar como se nos fosse infinito. Lembre-se disso; vai fazer diferença em algum momento para você.

***

Eu lia Orlando pelas paredes de meu quarto e repensava todas as escolhas e decisões acertadas que nossos passos davam. Não era Virginia, nem mesmo Vita, mas em algum lugar das vidas que intercediam e respiram o ar, mesmo separadas por séculos, lê-las me trazia esperança e, talvez pela primeira vez, uma possibilidade diferente de todas as impossibilidades apresentadas a mim até agora. Se elas podiam, eu, anos depois, não haveria de sabê-las; saber-me? E ser forte o suficiente para aceitar esses amores em meu peito?

– Achei que não fosse atender; você não vai negar o pedido dela, não é? Harper, essa mulher está querendo que você se torne como ela e ainda que eu não fosse sugerir que se embandasse para o grupo dela, você sabe que essa seria a oportunidade que você precisava.

Jeff sorria com as palavras e seu habitual falatório preenchia as linhas de voz que me faziam ouvi-lo. – Não vai demorar para que entendam que seu lugar está além daquelas paredes sem sentido. – Ele esperou e as respostas às suas perguntas eram meus maiores temores. – Do que tanto tem medo?

Eu balancei a cabeça em negativa e sorri com receios de volta. Por que havia tantos medos dentro de nós e por que permitíamos que eles nos prendessem nas gaiolas em que somente nós poderíamos nos libertar?

– Eu estou pensando na proposta dela. É algo a se considerar e talvez seja alguma coisa por agora. Literatura não é o tipo de coisa que não possa ser despertado com o sentimento certo.

– Agora está falando como a conheço. Não tem ninguém que possa fazer isso melhor que você. É uma oportunidade de algo mais; é o que vive pedindo. Não vá estragar isso. Pode cair fora a qualquer momento, então aproveite.

Soltei um riso agudo. – É, eu ganho, você ganha. Não me venha com essas histórias de cantadas baratas para conseguir algo com algumas das garotas que ensinarei. Não serei seu pombo-correio particular.

– Francamente, Harper. Não há quem resista a essa pele negra e esses olhos escuros nesse corpo atlético que tenho; sabe melhor que ninguém que é você que elas procuram quando querem sair comigo.

Bati palmas e gargalhei em ironia. Ele não estava errado e as pessoas o encaravam como que procurando que ele respondesse. Era um belo rapaz e seu coração era enorme. Dentre tantas almas, era Jeff que aparecera naquela escola, pouco tempo atrás e de um diálogo qualquer sobre algum poema de Lispector, ele passou a ser o cara a quem eu chamara melhor amigo. Ambos sabíamos que nós éramos figuras destoantes daquele universo, inadequadas de alguma forma em nossos contornos imperfeitos. E, de alguma forma, ele estava ali para algumas duras lições e tristezas que compartilhávamos, enquanto irmãos que éramos, quase como se partilhássemos o mesmo sangue.

– Harper! Preciso de você aqui!

– Iih! Eu não deixaria a senhora sua mãe esperando sequer mais um segundo; ambos sabemos que ela não vai ter paciência com suas eventuais demoras e respostas vazias. – Suspirei e fechei os olhos. Ela era uma pessoa difícil de lidar às vezes.

– Hora de ir, maninho. Nos falamos mais tarde, está bem? Ela está chamando outra vez.

– Pense na proposta da Aberdeen; ela não costuma procurar seguidores para correrem atrás dela. Ela gosta de você.

– Pensarei sobre isso; preciso ir mesmo, se ela chamar a terceira vez.... – o grito ecoou com mais seriedade e impaciência. – Bem, a não ser que não queria me ver nos próximos dias na escola, é melhor eu chegar lá já.

Desliguei o celular e o joguei sobre a cama; fechei a porta sem vê-la bater, mas ouvindo o som da madeira interagir com força contra o batente. Eu corria para os pedidos de minha mãe, mas minha mente se mantinha no caos de coisas que, poucas, me tirariam horas de sono e concentração. 

TALIAWhere stories live. Discover now