CAPÍTULO II

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Eu leio Orlando, de Virginia, e ainda que as palavras me façam sentido, é a sua vida o que me tira o ar. Eu me enveredo por suas aventuras, mas não é ele – e depois ela – o que mais me surpreendem: é a justaposição de haver diante de mim um mundo de autoras apaixonadas por mulheres. As páginas do mundo se abriram quando saltaram em mim as palavras que fizeram os horizontes ganharem cores: Virginia e Vita. Escritora e poetiza, amantes e apaixonadas, cartas ao léu, ao breu, às madrugadas solitárias de saudade. Sentimentos entregues, beijos cálidos e corpos que se conheceram nas escuridões de uma sociedade julgadora e estapafúrdia. Se havia amor ali, haveria de tê-lo também aqui? E enquanto meus olhos corriam as páginas e percorriam suas vidas, eu me deliciei em seus tremores, criando mais de fantasia do que de realidade e acreditando, talvez pelo primeiro fio real de esperança, que eu possa ser. É ali que o brilho se aquieta e que a natureza do sentimento que aflora me arremata o peito e sei que vai haver um dia e um amor, que vai haver esperança mais e não importará a turbulenta maré, ainda vai ser eu e esse peito que ama. Mergulho fundo e a satisfação dos mundos me toma, me beija e me acaricia o corpo com a brisa e com o calor de que está ali, naqueles livros velhos e empoeirados, nos novos e recém-saídos de fornos em livrarias; o amor atemporal entre almas que se reconhecem e se amam com a suavidade e a tempestuosa força do caos. E quando a voz dela me chama para jantar, ainda estou longe e demasiado distinta e a realidade volta aos poucos, tudo se repõe em seus lugares e eu rio com a satisfação de um mundo que vai entender a força de um beijo que resiste.

Aos poucos meus passos vão e se movem e me fazem descer as escadas em direção à mesa, onde meus pais e minha irmã estão. Eles me olham, resmungam minha demora, mas eu estou além e eles sequer percebem que meus olhos brilham e que eu sei que no ar que respiramos, há a força de mulheres queimadas nas fogueiras que sussurram para nós.

***

A escola está no horário próximo do almoço e misturam estudantes de vários períodos. O pátio está cheio e algumas pessoas estão jogando bola na quadra, enquanto alguns flertam e outros se jogam ao cenário aberto, do desejado descanso das palavras e das obrigações das salas de aula. Eu estou aqui, procurando por Jeff, com aquela barba desregrada e aquela pele escura em meio à multidão aglomerada em alguns pontos. Não demora para que ele esteja balançando as mãos à minha procura, sorrindo longe com a cabeça brilhando sob o sol ardente.

– Boa aula hoje?

Ele sorriu e me abraçou. – Não pense que estou melhor que você com trigonometria. Alguns minutos a mais para tentar garantir mais um ponto não é pedir demais.

Caminhamos em direção à árvore que sentamos para almoçar. Tiro alguns sanduíches de minha bolsa e passo um para ele, ciente de que a ausência de carne não lhe será um problema: ele já se acostumou com meus hábitos. Quando dá a primeira mordida, não suprimi um som de agradecimento e delírio. Diferente de algumas pessoas que reagiram em repulsa com meu vegetarianismo, ele não teve questões com essa ideia. Nos nossos revezamentos de besteiras para nosso almoço, ele sempre é bastante criativo com as misturas.

– Sabe, – ele começou, a boca cheia se aproximando de um segundo sanduíche – você deveria colocar seus textos nos murais. Você sabe que muita gente gostaria deles.

Peguei outro lanche e comecei a comê-lo, observando as pessoas que passavam por nós. – Não acho que quero fazer isso. Não sei seria uma boa ideia. – Mas o pensamento passara por minha cabeça inúmeras vezes. O que achariam das palavras que eu criara do mais íntimo de mim? O que diriam sobre os sentimentos e as expressões expostas e entregues? Desconfiariam de meus olhares ou de meus segredos?

– Está na hora, Harper. Você sabe que são bons; não tem quem escreva assim ainda; metade morreu e a outra metade tem medo; sabe em qual se encaixa.

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