– Um dia. Um dia, farei isso, mas por enquanto meu anonimato é a melhor escolha. – Dei de ombros como se aquilo nada significasse, mas conhecia o sentimento que corria por mim naquele instante. Animava-me a perspectiva de ser lida, mas ainda me amedrontavam os sentires dentro de mim. Havia receio dentro de mim e sempre o haveria, mas, de repente, a ideia não pareceu tão incômoda quanto a princípio. Fosse a ideia tentadora, eu ainda não estava pronta para isso; talvez houvesse muito de mim para ser mostrado; talvez eu fosse desvendada e traída por minhas próprias palavras; levada por minhas criações sem que pudesse controlar o que interpretariam daquilo que lessem; não era isso o que nos ensinavam a fazer com poemas mortos cujos autores já tinham adormecido sob o sono da noite escura? O melhor seria continuar ali, em silêncio, sob as sombras, sorrindo e sendo mais uma na grande multidão sem fim.

– Se um dia decidir mostrar quem é para o mundo e precisar de uma força no caminho, vou estar aqui. Sabe que pode contar comigo nessa.

Eu bati em seus ombros, agradecendo sua gentileza; Jeff era um cara legal e quase um irmão que a vida me dera nesses caminhos tortuosos de conflitos e dores que o mundo não teria o prazer de ver estampados em minha cara.

– Eu sei. É para isso que estamos aqui, certo? Uma perspectiva de que podemos salvar o mundo com nossas capacidades alucinadamente maduras para nossas experiências e idades tão tenras; às vezes eu posso quase acreditar nisso.

Ele me empurrou com seu corpo. – Sabe? Talvez sejamos a própria revolução agora. Por enquanto, isso é o suficiente.

E talvez fosse.

Por enquanto.

***

Quando chego em casa, meus pais estão conversando e Ella, cujos deveres para com sua vida já são muitos, se entretém ouvindo aulas sobre teorias e anatomia. É tão jovem e quando a olho, me pergunto como pode ser tanto quando conta poucos verões a menos que eu. Existe uma força que a acompanha e um jeito de lidar com seus medos que eu observo se modificar conforme cresce e se desenvolve mais que a seu corpo; à sua mente. Ella parece ter crescido muito em tão poucos anos e fitá-la, distraída com suas questões, diz mais sobre ela do que eu seria capaz de explicar a meus pais; às vezes penso como eles estão perdidos nessa história de viver. É um erro comum a todos eles; a cada uma dessas almas que nos cuidam e nos zelam e nos bloqueiam de agir por nossas ações. Eles parecem precisar aprender tanto, parecem prontos para algo, mas tão despreparados para conseguirem o que desejam. Tão longe; ainda tão perto. Mas Ella continua ali e ninguém percebe que cheguei; paro sob a escada que leva a nossos quartos e me mantenho ali, atenta à minha pequena irmã; ela que crescera tão demasiadamente por todos esses anos.

Ela pausa o vídeo alguns minutos e começa a falar sozinha, exemplificando a teoria de Darwin, escrevendo e analisando suas ideias e suas compreensões; ah, como crescera e eu sinto um aperto no peito em saber que Tempo, esse malandro desconhecedor de barreiras, ri para mim com aquele sorriso cínico, porque sabe que minha maior dor é conhecer. Ele me acena de longe, sem a malícia no olhar, quase como um aviso de que ele nunca poderá deter sua ação. Eu lhe meneio a cabeça, um quase agradecimento silencioso. E quando volto para Ella, ela está me encarando com sua habitual expressão pensante.

– Você está bem? – Ela me indaga com curiosidade no olhar; não me canso da sua expressão desconfiada, como se soubesse todos os nossos segredos. Então lhe sorrio e pergunto se já jantou.

– Sabe como é; muita carne para que eu possa comer alguma coisa por aqui; mas preparei algumas coisas para nós duas. Está com fome?

– Então, lhe devo uma. Gostaria muito de alguma coisa; estou faminta.

– Vamos lá; você vai gostar; os pimentões não vão se comer sozinhos.

Sentamo-nos à mesa e discutimos algumas questões que ela estudara há pouco e ri com suas teorias tão bem montadas. Alguma coisa que dizia que em alguns poucos anos, ela conseguiria tudo o que desejava e seria muito bem-sucedida no que quer que fizesse. Talvez eu estivesse um pouco melancólica hoje, mas havia um encanto em tê-la junto à mesa, um sentimento de vida e família que esquecíamos de sentir no cotidiano, ocupadas demais para lutar por coisas tão demasiadamente insignificantes, por peças quebradas e sem valor que nos matariam todos os dias, mas jamais nos restituiriam os dias perdidos. Então eu a encaro, sem que perceba onde meus pensamentos estão e em como eu quero poder ajudá-la a ser quem quiser ser. Não como uma fala de uma irmã mais velha e protetora, mas como alguém que zela por sua proteção e seu coração num mundo tão cruel e selvagem que destrói cada esperança no melhor momento dos sonhos. Vê-la ali era como tê-la em uma bolha, ainda não preparada para o mundo e suas desilusões, e ainda que eu houvesse vivido pouco, tinha em mim grandes e sombrias decepções a me assolarem o peito, como se delas já conhecesse há séculos.

Então eu a vejo rodopiar e sorrir como se esse momento dissesse tudo e seus olhos brilham com o conhecimento recém-adquirido, os pontos se interligando em sua mente com a malícia juvenil do saber. Estamos comendo suas artes culinárias, enquanto seus lábios me descrevem as suas maravilhas particulares e eu estou sorrindo e rindo com ela, porque sei que aquilo lhe é importante e eu desejo que ela possa tudo em todas as suas possibilidades.

Nossos pais passam por nós, mas para eles não passa de uma cena corriqueira entre duas irmãs. Talvez ainda não entendam a profundidade de alguns momentos; são vítimas calejadas do nosso mundo urgente demais; ou talvez já seja o pior: marcados demais por tanto e por tudo, já se esqueceram que algumas dores sempre existirão para almas sensíveis e que estamos rodeadas por elas. Por esses sentimentos ferozes e poderosos que assolam nossa existência em todas as épocas de nossas vidas.

Como que para sempre.

Mas eles passam, discutem alguma coisa que deixo passar, porque quero aquele momento com Ella e desejo que ela possa ter a melhor possibilidade nesses mundos em que somos vítimas e assassinas. Desejo que sejamos algo e que ela possa se ver livre de toda essa dor alucinada e feroz. 

TALIAWhere stories live. Discover now