7 - Como um Rei

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- Está vendo que estou te facilitando o trabalho, Luan? Já te conduzi até eles. É hora de agir!

Luan ouvia a voz metalizada e baixa de sempre, mas seguia caminhando entre um gole e outro da caninha com apenas a certeza de que não voltaria àquela casa, não voltaria àquela praça, e também não voltaria a lugar algum onde pudesse encontrar qualquer membro daquela família.

O entorpecimento da realidade aos poucos ficava mais forte, deixando seus olhos oscilantes, corpo desestabilizado, e passo a passo, até o aroma desprezível da pinga ia se tornando imperceptível. Só não entorpecia a indesejável presença que aos poucos se tornava mais real do que os pedidos de Luke por atenção.

Em alguns momentos, sua visão fixava exclusivamente a presença sombria. Não para vê-la melhor, mas sim na tentativa frustrada de fazê-la desaparecer. Porém, Natanael apenas emanava seu sorriso soturno ao qual se via quando ele pendia a cabeça um pouco para o lado, deixando uma parte do rosto aparecer entre os panos do capuz.

Luan pisava mais rápido para se distanciar, mas outros passos colavam nos seus e o acompanhavam. Apesar do pavor, se esforçou para formular a pergunta que não lhe saía da cabeça:

- Se eu fizer o que você deseja, você vai embora de uma vez por todas? Tendo um olhar sádico como resposta, insistiu: - Se você me acompanha, pelo menos diga o que quer... você realmente vai embora se eu fizer o que você deseja?

Mais alguns passos foram dados em silêncio, para qualquer direção. Finalmente, numa respiração mais profunda e gélida, uma resposta foi dada:

- Tem certeza de que sou eu quem quer? Essas foram as últimas palavras que Luan se lembrava. Depois, apenas recordava alguns flashes... berros, palavras obscenas, clamores... coisas que preferia não se lembrar.

Natanael o encontrava onde quer que ele fosse. Natanael não o esquecia. Natanael... se não fosse por Luke, este seria a sua única companhia naquela semana que sucedeu o pavor de estar na casa das cúmplices do Elohim.

No entanto, a enigmática presença apenas dizia algumas frases soltas e depois mantinha seu silêncio tenebroso. Luan tentava entender por que temia tanto algo que se dissolvia na escuridão, como as nuvens de chuva quando o sol chega. Porém, bastava vê-lo ali, acoplado à sua esquerda para um frio lúgubre percorrer seu corpo e quase tirar sua alma, levando-o àquela humilhante alienação. Sensação só não mais gélida do que a mão de Natanael, que às vezes o tocava no ombro suavemente, como que para lhe roubar o resto de sua sanidade.

Não há para onde fugir quando o flagelo vem de dentro, se houvesse um lugar seguro para se esconder, Luan não mediria seus esforços para chegar lá. E para aumentar seu suplício, há muito tempo qualquer entorpecente só trazia mais sofrimento ao invés do costumeiro relaxamento que curtia sentir nos seus tempos de farmacêutico.

Entretanto, não entendia qual era esse poder de atração das substâncias que as tornavam tão irresistíveis mesmo sabendo das consequências. Seu refúgio no álcool ou algo mais não passavam de portais de boas-vindas ao inoportuno "amigo invisível".

Será que sua alma descansará, Natanael, se eu cumprir a sua vontade ou continuará a me perseguir para satisfazer ao seu humor sádico? - Luan refletia, mas decidiu determinadamente a não se tornar um assassino.

Afastou-se, então, daqueles que poderiam ser afetados pelo propósito de Natanael, seguindo para uma cidadezinha a poucos quilômetros da que vivia. Caminhar até lá levaria um dia, tempo suficiente para evitar encontrar aquelas pessoas durante os surtos que sabia que teria.

Sentindo-se um completo estrangeiro nesta nova localidade, Luan foi expulso logo na primeira tentativa de abrigar-se. Os moradores da praça local não estavam dispostos a aceitar concorrência nas esmolas que recebiam e mesmo diante da completa exaustão, Luan e Luke tiveram que seguir em frente.


Já passava das onze da noite quando finalmente avistaram um lugar para ficar: uma lojinha abandonada numa viela. Luan entrou, deitou-se com sua coberta no chão de qualquer jeito no primeiro canto que viu e desfaleceu. Nem notou o sofá empoeirado ao fundo que poderia lhe servir para o conforto.

Luke primeiro cheirou todos os cantos do ambiente escuro desde a entrada com suas estantes enferrujadas até a pequena cozinha e banheiro nos fundos que certamente eram destinados aos funcionários. Tomou, então, água de uma poça que se formou devido à chuva da noite passada e envolto ainda por teias de aranha se deitou colado ao dono.

Somente quando um raio de sol entrou através da janela quebrada, Luan, com o rosto contorcido e forçando para abrir os olhos, notou onde estava. - Que sorte encontrar esse lugar! - pensou, apesar de achar que estar nessas condições definitivamente não era algo para alguém que realmente tivesse sorte, porém ao menos por algum tempo este local lhe serviria.

Levantou-se então e, com um pano que estava numa estante, tirou as teias do sofá e da pequena mesinha que ficava ao lado, sentando-se e vendo em sua mochila se havia sobrado algo para comer, mas apenas havia um resto de ração. Colocou um pouco para Luke que, não muito entusiasmado, comeu, sendo que sempre conseguia coisas mais apetitosas nos lixos que fuçava.

Luan, com o estômago já roncando, pegou um grãozinho da ração e com nojo colocou na boca, verificando que aquele negócio seco era sem gosto e duro. Se esforçou para engolir e comeu mais umas bolinhas, na tentativa de aliviar sua fome, mas isso lhe causava ânsia e resolveu ver se havia água na pia minúscula da micro cozinha.

Logo a água escorreu, certamente vinda da velha caixa, pois era óbvio que ninguém pagava a conta de água há muitos anos. Mesmo assim, pegou o copinho que Dandá havia colocado em sua mochila e o encheu várias vezes, até que sentiu a lisga que a ração deixou em sua boca se dissolver e teve a sua fome um pouco enganada.

Ainda sem ter certeza de onde estava, abriu a janela para ver se isso faria passar o cheiro forte de mofo que o induzia a inúmeros espirros, e viu que pouco mais à frente, na esquina, havia uma padaria com mesinhas na calçada.

Encontrou na sua mochila os trocados que Dandá lhe deu, mas as moedas que restavam só dava para mais duas caninhas, as quais eram imprescindíveis, muito mais do que uns pãezinhos.

Não sabia ainda como faria para se virar naquele novo lugar, só sabia que não queria pedir esmola e que não tinha condições psicológicas para trabalhar, nem mesmo para catar reciclagem como via muitos outros fazerem. Era um bloqueio desmedido tentar fazer qualquer coisa que o fizesse parecer com os outros miseráveis.

Já era próximo do horário do almoço quando Luan decidiu ir ao mercado comprar a bebida que lhe "esquentaria" de noite. Descendo a viela, ainda com um visual que não estava esfarrapado, conseguiu entrar no estabelecimento sem ser bloqueado pelos seguranças, como costumava acontecer.

No caminho de volta ao seu novo refúgio, observava o comércio local enquanto permitia que Luke explorasse as calçadas e resolvesse suas brigas com outros cães territorialistas. A cidadezinha interiorana parecia muito com a anterior, exceto por já ter mais prédios e lojas maiores.

Uma inquietação tomou conta de Luan ao passar por pequenas farmácias, trazendo lembranças dos tempos em que se sentia humano. A visão de uma farmácia com uma placa de vaga para farmacêutico foi como uma punhalada final.

Apesar de saber que poderia buscar emprego em qualquer farmácia, uma força magnética o fazia sempre retornar à inanição, devido ao abismo entre os pensamentos racionais e a realidade que parecia intransponível.

Já próximo ao seu abrigo, ao passar pela lanchonete da esquina, sentiu um cheiro apetitoso que o fez salivar e até pensar em mendigar algo para comer, mas desistiu sem coragem. No entanto, ao notar um casal que se levantava, viu restos de lanches, batatas e até bebidas. Num impulso, atravessou a rua e pegou todas as sobras sorrateiramente, sem ser notado pelos funcionários.

Naquela tarde se fartou sentado no conforto do sofá, e assim Luan descobriu a estratégia de como se alimentaria bem e de graça na sua nova realidade.

- Vamos comer como reis hoje, Luke! - disse empolgado entregando um pedaço generoso de lanche ao cão suplicante.

Infelizmente a empolgação durou pouco, logo a voz rouca e provocativa lhe fez fechar o semblente que antes parecia até alegre.

- Está se sentindo satisfeito meu amigo?

Luan suspirou profundamente e olhou a sombra que se formava à sua esquerda, enquanto segurava firme a garrafa que pegou na lanchonete, a qual tomava no gargalo.

- Está se sentindo como um rei que come restos, eu suponho!? - Natã o ridicularizou na primeira oportunidade, e prosseguiu: - Comeu até comida de cachorro e fica neste lugar caindo aos pedaços... como suporta essa situação humilhante?

A fisionomia do infeliz se fechava cada vez mais num aspecto assombrado, mas nenhuma palavra foi dita por ele, apenas a voz metalizada e sussurrada permanecia com as provoções: - Você merece mais do que isso! Reaja!

Natanael saiu de seu lado e agachou-se à sua frente com sua cabeça sempre baixa e os olhos levantados num semblante selvagem, como fazia na maior parte do tempo, mantendo-se num silencio interminável que sempre precedia um novo ataque.

Luan

- Lágrimas de novo... o que fizeram com você pobre e frágil, Luan? - perguntou com seu costumeiro sorriso sarcástico, antes de esvanecer-se no ar.

 o que fizeram com você pobre e frágil, Luan? - perguntou com seu costumeiro sorriso sarcástico, antes de esvanecer-se no ar

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