Anjo das Águas

28 - PROPRIEDADES CURATIVAS DO COCÔ DE PEIXE

Abri os olhos e o rosto de Raphael era o sol da meia noite. 

As pérolas que faziam uma linha de uma orelha a outra passando por baixo dos olhos e pelo alto do nariz emitiam uma luz dourada suave que não fazia arder minha visão.

Então quer dizer que bioluminescência era um novo truque do anjo das águas coloridas? Legal!

Minhas costas encostavam numa superfície lisa e gelada. Eu conseguia respirar enquanto via os fios coloridos saindo das asas de Raphael e entrando nas minhas narinas. O ar não era só revigorante, mas tinha aroma de eucalipto, o que trazia um prazer a mais na respiração.

Eu não sabia quanto tempo havia se passado desde o meu desmaio e por um momento fiquei me perguntando quem eu era e por que eu estava no fundo do oceano uma hora daquela em vez de estar pulando na minha cama.

Eu fiz menção de levantar as costas, mas uma dor latejou meus músculos.

— Iogo, você ainda não tá bem. Não pode se mexer muito.

Foi aí que eu percebi que estava com as costas nuas. Poxa, primeiro o sobretudo, aí o sapato, depois a camisa. Daqui a pouco eu ia voltar coberto de algas para casa.

Naquela hora, Raphael colhia algas de texturas diferentes e parecia misturar itens que colhia do fundo do mar. Então, o anjo se aproximou de mim e tocou minhas costas com as algas.

— Ai, que geladinha essa pomada. Adorei. Bota mais.

— Isso é cocô de peixe.

— Quê? Ah, que nojo! Sai pra lá, não vou deixar você pôr isso em mim não! 

— Iogo, para de frescura — Raphael falu. —  os peixes do Pardo são especiais e seu cocô ajuda a cicatrizar. O cheirinho é até doce, não é?

Minha cara era: "Esse negócio de pomada de cocô doce só pode ser meme, né?" 

— O dia que eu provar cocô, eu vou ter batido mais forte a cabeça do que hoje, Raphael  — eu resmunguei. — Mas falando em bater a cabeça, o que que houve?

— Você entrou de mal jeito na correnteza e se ralou toda na hora de frear, Iogo. Ficou umas 4h assim com cara de peixe morto.

— Oxe, mas você não falou nada sobre frear.

Raphael ficou vermelho

— Esqueci.

Nessa hora, se eu não estivesse cheio de hematomas, eu ia dar um cascudo no Raphael.

— Poxa, quando você tava na superfície, eu fui um guia turístico magistral, agora você me retribui com isso? Foi uma sensação horrível. Era como um tobogã na velocidade da luz. Eu achei que esse rio ia ter o meu cemitério para a eternidade.

— Ah, Iogo, deixa de ser exagerado, vai — disse Raphael. — Eu já tô acostumado a pegar essa corrente. Sempre que vou alimentar os ágalos nas corridas que eu faço de manhã, eu pego. Tem uma para ir e outra para voltar. Em alguns horários ela está mais forte ou mais fraca, depende do Pôodas do Rio.

— Falou oyoche para mim.

— Um dia, eu ainda vou te dar um dicionário de presente.

— Ei, minha piada — eu quase ataquei o anjo por ter tido essa audácia.

— Mas relaxa, Iogo. Daqui a pouco, você vai curtir a viagem.

— Curtir eu curto viajar para meu castelo. Mas beleza.

— Castelo? Então você vai gostar do próximo lugar que vamos ir.

— Peraí, a gente vai poder andar agora? Eu ainda tenho que pôr meus ossos no lugar. Tô todo escangalhado.

— Iogo, calma, eu vou te ajudar. Mas parado não dá pra ficar. Eu não tô sentindo os intrusos.

— Isso é um bom sinal. Eles devem ter desistido e ido pra casa.

— Não, Iogo, talvez eles tenham pegado outro caminho.

Essa parte eu não entendi muito bem, mas como Raphael era o especialista na vida debaixo d'água, deixei pra lá.

Raphael deu um assobio e de repente uma perturbação no ar puxou meu pescoço para trás.

Ao me virar, eu vi golfinhos andando no formato de infinito como se estivessem ensaiando os passos de uma coreografia.

A cena seguinte foi impressionante. As criaturas não dançavam: quando cerca de uma dezena delas passou por nós, eu vi um anel de ar sendo soprado do focinho de um e parava na ponta da do outro. A bola de oxigênio ia para lá e para cá eles davam cambalhotas.

Raphael assobiou de novo e dois deles deram pit stop na brincadeira para se curvar e se apresentar ao senhor: o anjo.

— Por favor, vou precisar da ajuda de vocês. Iogo está ferido. Por favor, levem ele pro centro de Aquari e lá vamos poder conversar melhor. Precisamos proteger o tesouro do rio Pardo.

Então foi assim que eu andei em um meio de transporte decente depois de cinco horas de aventura no oceano.

Aquela região pela qual navegávamos ficara mais clara, porque os golfinhos eram rodeados por criaturas do mar que emitiam luz. Montar nas costas de um golfinho não é para qualquer um. A pele escorregadia e lisa do mamífero tornava difícil eu me segurar em alguma de suas barbatanas. Eu ficava com medo de o golfinho continuar sua jornada e, do nada, eu escapulir para trás. 

Já Raphael não parecia ter esse problema, ele estava tão seguro e tranquilo como se andasse de cavalinho do carrossel na velocidade zero.

Fomos até mais fundo no oceano e eu sentia ouvido entupido pela pressão junto com um leve zumbido. Apesar disso, a jornada em cima dos golfinhos me permitiu aproveitar a viagem e notar como o lugar em que Raphael morava era um universo a parte e inexplorado pelos kyoches. Águas-vivas, camarões, atuns, sardinhas, corais e polvos enfeitavam a paisagem em meio ao azul escuro, iluminado pelas pérolas do rosto do anjo e pelos peixes luminescentes que nos acompanhavam.

No entanto, notamos que aquela travessia chegava ao fim, pois uma gruta montanhesca logo a frente impedia a passagem. Quando o Raphael nadou para baixo, seu rosto iluminou a paisagem tornando visível um túnel pedregoso. O meu golfinho parou sob a ordem de Raphael e eu estreitei os olhos para ver quais seriam os próximos passos do anjo. Ele nadou na direção da gigantesca caverna e com gesto rápido das mãos orientou meu meio de transporte a fazer o mesmo.

A gruta era um corredor largo com estalagmites no teto e no chão. A escuridão era tão densa que a minha frente Raphael parecia uma vela sua solitária no meio de um breu. Após cerca de 30 minutos, a luz no fim do túnel nos engoliu, se é que podíamos chamar aquilo de luz, pois era bem falha naquela região. 

Porém, ao emergirmos para fora da gruta, uma nova paisagem se abriu: Aquari.