5 - UMA CONVERSA COM ALGUÉM QUE CONSEGUE FAZER CHURRASCO DEBAIXO D'ÁGUA

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Tenho certeza que Raphael fez xixi nas calças, mas, pelo que ele me disse mais tarde, todos os resíduos do seu corpo saem pelos poros da sua pele, ou seja, suor, xixi e cocô saem tudo junto em um milhão de buracos, então não dá pra ver só nas calças. E se eu soubesse disso naquela hora, nunca ia deixar ele me abraçar, que nojento. 

Mas eu não ia deixar o garoto assustado, senão ele ia voltar pro rio e me deixar perdido no meio do lugar mais estranho do planeta Kyoche. Quando escutou a palavra "guerra", ele meio que ficou em choque, então a gente se sentou na grama nas margens do rio e eu fui tentar dar aquela amenizada no clima pra garantir a minha volta pra casa. Só que era impossível maquiar aquela situação. Aí, eu terminei desabafando sobre a minha vida pra um estranho, mas, no fim, até que foi legal. 

Raphael queria saber que guerra era essa e eu banquei o professor. Eu achava uma palhaçada lutar numa batalha sem sentido. Ele até comentou que talvez a gente, que era guerreiro, não soubesse o verdadeiro segredo que tinha feito os oceanos começarem a brigar. Eu falei que nem guerreiro eu era ainda e nem queria ser. Eu era o príncipe. E eu achava uma sacanagem enfiar o herdeiro do trono num inferno daqueles. Outra coisa curiosa sobre o anjo é que, depois de eu dizer que era rico, ele não comentou que o aniversário dele era segunda. O que foi impressionante, considerando o histórico anterior. 

Bem, minha intenção era encerrar a conversa por aí e voltar para o campo. Porém, quando eu imaginei que ia ter que subir de novo num ágalo, a ideia de me mudar para o rio de vez pareceu bem atraente. Acabou que foi bom matar aula para conversar com o anjo das águas coloridas. Bom, tirando a parte que eu tinha que explicar metade das palavras que eu dizia, acompanhar o ritmo lento do cérebro dele e o medo constante de virar pedra por estar num lugar amaldiçoado.

Depois, Raphael contou como era sua vida no rio, mas o que eu achei mais estranho era ele adorar churrasco de sardinha. Minha mente não concebia como alguém conseguia fazer churrasco debaixo d'água, mas tudo bem. Os pais deles pareciam ser super heróis pelo jeito que ele falou, eram legais, divertidos e carinhosos e acho que ele merecia uma medalha de ouro só por me fazer sentir inveja. O anjo também contou que não havia crianças no rio, só vivia os três, e eu achei que ali a minha situação era melhor que a dele. Pelo menos, eu tinha um monte de gente para eu destilar o meu ódio. Imagina só viver sem poder falar mal de ninguém, que coisa. 

Uma hora, o anjo disse que os pássaros já deviam ter acabado com a baderna lá no estádio, agora que ele estava na superfície. Foi aí que eu percebi que já era noite. Olhei para o céu e o rio refletia a luz das estrelas, formando uma paisagem fascinante. O problema era que as pessoas no campo ainda pensavam que eu tinha sido sequestrado. Talvez torturado. Esquartejado. E a última coisa que eu queria era o campo, a cidade ou, quem sabe, o país todo atrás de mim. 

— Raphael, acho que tá na hora de eu voltar. 

— Tudo bem — ele falou. — eu vou te acompanhar até lá. 

— Até lá, não, cara. Me leva, sei lá, até a esquina. O que eu vou falar se alguém te ver? Ficou louco? É cada ideia... 

— Alguém me ver? Espera só. 

Ei, Raphael falou algo que eu não entendi. Tem alguma coisa muito estranha aí. Foi então que o anjo se levantou, e foi se distanciando aos poucos. Ele fechou os olhos, concentrando-se como se estivesse em sua aula de meditação. E, de repente, eledesapareceu. Espera aí, quase. Ainda dava pra ver seus contornos dourados, como uma fina teia de aranha contra a luz. Achei o máximo. Não estava na lista de habilidades kyoches ficar invisível assim. Só que tinha alguma coisa que não estava se encaixando. 

— Raphael, ainda tá dando pra te ver. Acho melhor você melhorar essas suas habilidades, hein.

— Que nada — o anjo continuou sorrindo, de olhos fechados — É que você já me conhece, a gente já conversou e tal. Quanto maior o laço da pessoa comigo, menos eu posso esconder dela.

Isso mereceu um sorriso de orelha a orelha. 

— Agora, — o anjo disse. — Vamos montar no ágalo e partir para o campo. 

Raphael se virou e eu pude ver suas asas brilhando e gotejando água como um chafariz. Ele emitiu um som estranho e agudo, que deduzi ser o canto do pássaro. E, como num passe de mágica, o ágalo caminhou até nós, com os pés afundando na areia. Raphael acariciou suas penas e montou nele primeiro, como o piloto. E eu fiquei no banco de trás, enquanto a ave xingava palavrões na língua dos ágalos. Segurei bem o ombro de Raphael, rezando para que o pássaro não desse mais uma de suas aventuras. 

 — Fica tranquilo — Raphael notou que eu tremia mais que uma britadeira — o pássaro sabe o que deve fazer. 

Mas o ágalo começou a correr pela areia da margem e decolou. 

... 

Quando eu apontei o dedão para o campo de treinamento, Raphael virou o ágalo em sua direção. No horizonte, o estádio se erguia com seus quatro pilares, onde as bandeiras kyoches ondulavam. Sinceramente, apesar de não ir muito com a cara daquele lugar, era muito bom não estar mais perdido. 

De repente, um aroma subia ao meu nariz, fazendo meu estômago roncar. O cheiro era de cogumelos assados com ervilhas. Foi aí que eu reparei que no centro do campo, havia mesas alinhadas em três colunas, com lâmpadas coloridas penduradas em paus enfiados na grama. Era hora do jantar. Eu já podia ouvir o tilintar de talheres e as conversas emboladas. Não via a hora de descer logo, mas o pior era que eu ia enfrentar a maior burocracia do treinador, sabe. Ele ia no mínimo me metralhar de perguntas. 

O pássaro começou a baixar voo e Raphael já foi ficando invisível, como daquela vez. Eu pude ver alguns campistas voltando atenção ao ágalo. 

— Iogo, eu vou pular, agora é com você.

— Ok, mas... 

Então, do nada, algo saiu dos planos. 

Quando a gente planava bem acima das arquibancadas, sentimos um peso pressionar o pássaro para baixo. Quando nós giramos o pescoço para ver quem tinha apagado a luz natural, eu senti alguém despencar nas costas do ágalo entre eu e Raphael. Meus olhos imploraram por socorro. Aquele definitivamente não era meu dia de sorte. O pássaro gritou e balançou em pleno ar. Eu tentei me equilibrar. Meus dedos procuraram em vão algo sólido para se apoiar. Tentei me segurar até na cauda do ágalo, mas, antes que eu tivesse tempo de ver quem tinha desestabilizado ele, escapuli para fora. 

A última coisa que vi antes de cair que nem um meteoro lá embaixo foi Raphael se resumir a um contorno cada vez mais distante, enquanto gritava o meu nome.

Anjo das ÁguasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora