6 - EIS QUE PATA SALVA MINHA VIDA TENTANDO ME MATAR

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A escuridão era densa ao meu redor. O fedor balançou meu estômago, causando uma ânsia de vômito. De repente, minha cabeça emergiu de algum lugar fofo como quem emerge a cabeça de um rio. Olhei ao redor. Aquilo era um latão cheio de sacos de lixo. Aliás, se eu saísse de um rio, ia cuspir água, mas sabe o que eu cuspi? Saiu uma espinha de peixe da minha boca que já devia ter sido chupada umas cem vezes por outro kyoche. Argh. Eu estava bem atrás das arquibancadas de madeira, próximo da cozinha e de onde se descartava o lixo. Mas a primeira coisa que eu vi quando eu saí do latão me deu ainda mais nojo. 

Havia uma silhueta de uma menina ali. Atrás dela, o pássaro ágalo estava vendo estrelinhas ao redor de sua cabeça. Deve ter sido ela que atacou nosso meio de transporte em pleno voo. Quando eu estreitei os olhos, eu a reconheci. Era Patagona, a capitã do treinamento feminino e, de quebra, minha arqui-rival. Engraçado que esse também era o nome de um animal ridículo do planeta Kyoche. Esse bicho parecia não se decidir o que ele era: o monstrinho tinha quatro patas, pelos e asas, vê se pode. A mãe dela devia ter acabado de sair de um bar quando foi registrar a pobre coitada. Bem feito. 

Mas o nome ainda era a coisa mais bonitinha nela. A garota era morena, tinha lá pros seus 16 anos e, naquela hora, seus cabelos cacheados estavam tão radiantes como uma vassoura eletrocutada. Ela usava uma bandana vermelha na testa super fora de moda e seu rosto até podia ser considerado bonito, dependendo da deficiência visual do indivíduo. A menina não valia o ar que respirava, falo mesmo. Ela ganhou um posto superior aqui dentro só por ter se saído melhor nas atividades que o treinador passava.Isso, é claro, porque eu não estava levando a sério. 

— Ei, você tá maluca? — eu cuspi ainda um talo de maçã comido. — Quase me matou. 

— É assim que você me agradece? — ela se aproximou de mim. 

 — Agradecer? Pelo quê?

— Eu salvei sua pele, Iogo. Você devia me dar um prato de comida grátis. 

Eu nem comentei o fato de ela comparar o valor da minha vida com o de um prato de comida, mas anotei na lista de rancores do meu coração. Deixa ela esperar. Daqui a dez anos, quando ela fosse me pedir um favor eu ia dar o meu troco com muito prazer. 

— Qual a necessidade de você me derrubar, Pata? Eu já estava no campo. 

 — Por isso mesmo, Iogo. O treinador mandou te procurar nos arredores do campo. Eu vi você em cima daquele pássaro maluco e fui te ajudar, seu mal agradecido. 

— Ah, tá, se toda ajuda fosse essa, tadinho dos mendigos. Eu tava ótimo até você aparecer no meu caminho. Olha só o que você me fez. Me sujou todo, me derrubou em pleno voo e feriu o pobre do pássaro. 

 — Ah, tá, que eu vou acreditar que você tava pilotando sozinho. — ela provocou. — Desde quando você pilota pássaros? 

Eu retruquei. 

— Desde que o professor me ensinou. 

Patagona ficou vermelha até sair fumaça pelos seus ouvidos. Se ela fosse um cachorro, estaria saindo espuma da sua boca. 

— Ei, você me respeita, hein. — ela cuspiu as palavras. — Eu fui eleita a líder aqui, esqueceu? 

— Grande coisa. Você também que está esquecendo quem sou eu. 

 — Se você deixasse, eu bem que esqueceria. Você só sabe dizer que é o príncipe. O príncipe pra lá. O príncipe pra cá. Se bem que esse daí deve ter caído muito no conceito do rei, não é? Se nem seu pai te quer no castelo, vovozinho, você deve ser ainda mais insuportável lá. Sabe o que eu acho? Que você nem foi sequestrado, só aproveitou a deixa e fugiu do campo. 

Depois dessa, eu tive que respirar fundo. O que ela tinha a ver com a minha vida? Toda sem noção essa garota. 

— Ah, vai partir pra agressão verbal agora, é? Cê pode falar de mim, mas vira a boca pra falar do meu pai. 

— Falo sim. Você é um mimado de nariz em pé. Tu acha que só porque nasceu numa família especial não vai ter responsabilidade nenhuma na guerra? Pode tirando o cavalinho da chuva. 

— A única coisa que eu vou tirar é você do meu caminho. 

— Nada disso. — Pata segurou meu pulso. — Fui eu que te encontrei, eu que vou levar o prêmio pro treinador. Ele pode até me promover. 

— Isso não vai ser mais necessário, Pata — o treinador Amundos apareceu de repente, deixando nós dois em choque. — Achamos o Iogo são e salvo.

Anjo das ÁguasWhere stories live. Discover now