Anjo das Águas

19 - MEU PAI PULA A CERCA ERRADA

— Indio, seu irmão é muito desagradável.

— Ele só não gosta de você. Super normal. Esqueci de avisar que ele tem que pegar senha e entrar na fila.

— Sem graça você. — disse eu, mas resolvi pular pra parte que interessa. 

— Que bom que consegui te tirar de lá. Você não sabe o que aconteceu.

— Sei sim, — debochou Indio. — você foi derrotado pela Patagona.

— Obrigado por me lembrar. Mas não é isso. É o que aconteceu depois.

— O quê? Você quer que eu adivinhe? — Indio perdeu a paciência. — Ah, meu filho, tá de noite, meu cérebro tá congelado demais pra ficar pensando muito.

— Deixa eu parar de suspense. Não tem o Raphael? Ele me disse que eu sou okyoche especial.

Indio fez cara de nojo.

— Ih, é agora mesmo que você vai ficar se gabando.

— Não, Indio, antes de eu me gabar eu preciso tirar esse medo de mim.

— Medo de quê? — Indio perguntou.

— Ele disse que eu tenho que ir para o rio Pardo encarar o pai dele.

— Não acredito. — Indio levou as mãos à boca. — Você vai ter que virar um peixe igual a ele.

— Não, cara, eu quero é distância daquele rio. Eu tô sendo treinado pra ser rei, não pra ser kyoche especial. E vai que ser especial quer dizer que eu sou mutante, que vai nascer uma segunda cabeça em mim?

— Seria o máximo. — Indio riu. — Quem sabe a segunda não pensa melhor quea primeira?

...

A gente ficou conversando, conversando, até que ficou bastante tarde. Aquela altura, a coletiva já tinha terminado há tempos e até o rei já devia estar roncando. Indio ligou o conchego dele e falou pra Aspique que ele ia dormir ali hoje. Aspique falou pra Indio tomar cuidado pra eu não atacar ele durante a noite. Deu vontade de pegar o irmão do Indio e tacar pela janela. Mas, como ele não estava disponível, foi o Indio mesmo.

Brincadeira, eu só levei o garoto pra ver como era a vista da janela do meu quarto. Vocês, terráqueos, também tinham que ver. Ela dava uma vista panorâmica da cidade, além de que, se você se esticasse um pouquinho, podia admirar a fachada do castelo. Ela lembrava uma construção da era medieval na sua terra. As cores cinzas e roxas coloriam as paredes e os muros de pedra. Só que o mais curioso é que havia um olho enorme esculpido em pedra bem no centro. Foram os oyoches que deixaram aquilo ali, desde a época da colonização. Dizia a lenda que, quando os oyoches foram expulsos, o rei kyoche começou a tirar, só que o povo começou a ficar com problemas de visão misteriosos. Aí, ele pensou que era uma maldição oyoche e teve que deixar o olho ali quietinho, senão o povo podia até ficar cego.

Eu tava contando essa história pro Indio, quando ele apontou pra baixo na janela. Havia um vulto de capa preta andando no jardim do castelo rumo a cidade. Tudo bem, devia ser mais um guerreiro de guarda. Mas não era. O vulto tirou a capa e olhou de um lado para o outro. Era Hared. Era meu pai.

— Cara, o que seu pai tá fazendo ali?

— Ele disse que ia dormir. Ele teve um dia cansativo de viagem e ainda foi na coletiva de imprensa. Eu não tô entendendo mais nada.

— Será que seu pai arrumou uma namorada? Será que ele não tá pulando a cerca? Iogo, você vai ter uma nova mamãe.

— Vira essa boca pra lá, Indio. 

A única cerca que ele devia se esforçar pra pular é a que separava eu e ele.

— Acho que não é isso, cara. Meu pai tá muito estranho desde que ele chegou. Na sala do trono, ele disse que me trouxe um presente, mas ele sempre tinha estado ali. Tirando isso, eu tinha uma expressão estranha e muito gentil.

— Alguma coisa estranha deve ter acontecido nessa viagem dele. Será que essa saída no meio da madrugada tem a ver com o fato de ele estar esquisito?

— Não sei, mas eu vou descobrir.

Indio deu um passo pra trás.

— O que você vai fazer?

Eu olhei Indio de cima a baixo.

— Ei, o que você tá planejando fazer? Por que tá me olhando assim? Gostou do meu casaco? É de última moda, eu sei, mas...

— Indio, seu irmão tá de guarda, né?

— Sim, mas...

— Então, escuta o que eu vou te dizer.

Ajeitei a gola, respirei fundo e segui meu pai rumo ao desconhecido.