3 - EU CORRO O RISCO DE VIRAR UMA ESTÁTUA VIVA

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Eu e Indio corríamos em direção ao centro do estádio, mas, quando dei por mim, o garoto estava lá trás, caído no chão, gritando socorro. A ave estava bicando o menino como se ele fosse milho de pipoca. Enquanto isso, o treinador tentou correr para nos ajudar, mas vieram mais quatro pássaros revoltados em cima dele. 

Eu não podia deixar Indio se ferir assim. Eu não sabia porque os ágalos tinham dado a louca do nada. Talvez eles quisessem pegar o príncipe. Talvez o alvo fosse eu. Os guerreiros e outros aprendizes iam demorar para perceber que tinha algo errado e vir nos ajudar. Eu tinha que fazer alguma coisa. Foi então que eu lembrei do treino de ontem. Nós tínhamos aprendido uma técnica simples de como convocar pequenos bichos como armas. Você ainda não sabe, mas, na língua oceânica, kyoche significa lábio, voz ou boca do oceano. Isso tem a ver com a habilidade da nossa raça. Temos o paladar e a fala superdesenvolvidos. Conseguimos treinar nossas cordas vocais para se comunicar com animais e insetos. Dava também para ficar mais forte apimentando o paladar com jiló, abacaxi, limão, essas coisas. Só que o que eu ia fazer era pedir ajuda às formigas. Formigas? É, dava pra convocar elas com um simples sussurro. Não era um tipo de formiga comum. Era a pote-de-mel. O corpo dela parecia mesmo um pote com um líquido amarelo. 

Eu tentei fazer o som igual ao que o treinador ensinou. Depois, eu varri o chão como olhar pra ver se tinha dado certo. A sorte é que uma fila de formigas emergiu da grama e eu corri em sua direção. Fiquei com pena de usá-las daquele jeito, mas era a única forma. Lá na frente, o pássaro se agitava em cima de Indio e a camisa dele ficou com cada rasgão que você tinha que ver. A pergunta que não queria calar era porque eles estavam fazendo isso, mas se era difícil pra mim falar com uma formiga, quanto mais com um pássaro gigante. 

Eu peguei um bolo de formigas na concha das mãos e corri em direção ao ágalo. O monstro deve ter percebido minha estratégia, porque atirou suas garras para cima de mim. Eu pensei que esse seria o meu fim, mas o máximo que ele conseguiu fazer foi rasgar a manga da minha camisa. Quando eu cheguei perto dele, um jato de adrenalina inundou o meu corpo. Antes que eu pensasse em parar, dei o maior pisão no pé do bicho. 

A ave revirou os olhos e arreganhou o bico. Essa era minha deixa. Eu atirei o bolo de formigas bem na língua dele. O pote-de-mel explodiu na boca dele, evaporando emfumaça. Foi então que o pássaro enlouqueceu. A superstição dizia que se você comesse uma delas, ia passar sete anos de seca em casa. O pássaro se agitou como se estivesse tendo convulsões e aquilo deu tempo de Indio correr para as arquibancadas de novo. Mas assim que eu fiz meu ataque, o medo retornou e eu corri na direção contrária ao pássaro. Eu só tinha que fugir dali o mais rápido possível e me esconder debaixo da camisa do treinador. Só que não deu tempo. 

Quando eu dei uma espiada por cima do ombro, a ave corria bem pertinho de mim. O treinador deu um grito. Indio acenou desesperado. Mas nada disso a impediu. Ela me levantou pelo bico e eu caí sentado em suas penas como se fosse o piloto. Eu estava montado num pássaro de guerra pela primeira vez, mas quem estava me controlando era ele. O ágalo continuou correndo e eu tive que me agarrar ao seu pescoço. Eu cerrei os olhos com força. Meus cabelos brancos esvoaçaram. O vento zumbia no meu ouvido. Meu estômago dava cambalhotas. De repente, eu senti o pássaro decolar. Ele não estava mais tocando o chão. 

As vozes lá embaixo foram ficando cada vez mais distantes e eu estremeci. Por que o ágalo tinha nos atacado? Para onde ele estava me levando? Com certeza, ele ia se vingar do que eu fiz. Ele ia me levar para a aldeia dele e me assar na fogueira. E quando eu abri os olhos, uma névoa branca embaçava minha visão. Por favor, me diga que aquilo não eram nuvens. Mas eram sim. E aquilo significava apenas uma coisa. O pássaro tinha saído dos arredores do estádio e eu estava completamente perdido. 

...

Enfim, o ágalo aterrissou. 

Eu abri os olhos devagarinho e uma nova paisagem se abriu. 

Ali com certeza não era o campo de treinamento. 

Eu girei meu pescoço ao redor do lugar. Ali eram as margens de um rio enorme. Atrás de mim, tinha uma fileira de árvores densas. Eu liguei os pontos. Aquilo ali era uma floresta. Foi então que ouvi um barulho. O pássaro correu até a borda do rio e eu caí no chão de cabeça pra baixo. Só consegui ver ele bicar a água que nem picapau. Agora eu tinha entendido. Esse era efeito do pote-de-mel, que só faltava fazer a vítima soltar fogo pela boca. 

Só que eu estava perdido. Nem sabia quantos quilômetros o pássaros tinha percorrido ou quanto tempo ele tinha voado. Mas, quando eu olhei para o rio, uma coisa me fez perder o fôlego. 

As águas eram coloridas, como um arco-íris escorrendo sem parar. Azul, laranja, amarelo, verde, violeta. Aquilo não podia estar acontecendo. Era impossível. Eu devia ter morrido e estar no além, com certeza. 

Então, eu me lembrei. 

Aquele era o rio Pardo. 

Quando essa informação veio a minha mente, eu me desesperei e comecei a pular para não tocar os pés no chão. 

Diziam que se você pisasse naquele rio, você ia virar pedra. Eu fiquei esperando eu virar uma estátua, mas, depois de alguns minutos, percebi que aquilo não aconteceu.Mesmo assim, eu não devia estar ali. Tinha uma lei que meu pai fez que proibia qualquer aproximação às margens do rio Pardo. Aquele lugar era perigoso. Além das águas serem coloridas a floresta pegava fogo de vez em quando e muita gente precisou morrer para aquela zona ser interditada. Por que o pássaro tinha que me levar justo para ali? 

Eu já ia bater em retirada quando, de repente, escutei um som e me virei. Perto do ágalo, um menino rasgou as águas do rio, deu dois saltos mortais e cravou os pés na areia. 

— Se afasta do pássaro! — ele disse, batendo um galho sem folhas nas mãos. 

Aquilo não podia ficar mais estranho. Eu pensei que aquela área era desabitada. Se eu não devia estar ali, quanto mais outra criança. Será que os ágalos estavam sequestrando moleques para jogar na fogueira? Foi aí que eu percebi que não era um garoto comum. Das costas dele, emanavam dois jatos de água cristalina, como se fossem asas. Suas orelhas eram pontudas e ele tinha uma linha debaixo dos olhos com pérolas douradas. Sua pele era meio azulada, seu cabelo azul marinho lhe caía na altura do ombro e era muito encaracolado. Os pés dele eram a cópia certinha de um pato. 

Meus olhos pularam das órbitas. Aquele, com certeza, era o meu fim. 

Decidi testar o terreno. 

— Quem é você? 

Ele avançou, deixando um rastro de água por onde passava, e apontou o galho em minha direção. 

— Raphael. Agora, por favor, se identifique, você está pisando em território estrangeiro. 

Anjo das ÁguasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora