Relato de Canibalismo

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Existe uma mancha na história do nosso país que jamais será apagada.

Não sei sua idade, então talvez o passado lhe pareça apenas um conto macabro que seu avô lhe contou. Ou posso estar contando a sua história, afinal, cinquenta anos não é tanto tempo assim.

Eu fiz parte disso, trabalhei em uma das fazendas e é a primeira vez que falo sobre isso.

Tentei enterrar tudo no esquecimento, mas a cada vez que fecho meus olhos sou transportada de volta pro mesmo lugar.

Eu sou órfã, cresci num orfanato católico. As freiras contavam histórias sobre o mundo fora dos muros, que depois descobri serem todas verdade.

A carne animal deixou de ser uma opção muito antes de eu nascer.

Existiam muitas teorias sobre a causa.

Hoje é quase consenso que se trata de uma arma química lançada para desestabilizar países rivais. Quem lançou continua sendo um mistério.

As irmãs do colégio diziam ser uma praga bíblica, um sinal do fim dos tempos.

Eu prefiro acreditar que foi um acidente, quero acreditar que os seres humanos ainda tem alma e que Deus não é tão cruel.

Mas, melhor do que apontar culpados é falar sobre as consequências.

Quando todos os animais se tornaram tóxicos para os seres humanos o caos se alastrou.

Dizem que o rei descobriu num banquete, quando seu sommelier morreu ao experimentar sua comida. Mas, é provável que isso seja uma lenda.

Segundo as freiras, não demorou muito para começarem a notar um aumento na taxa de desaparecidos em todo o país.

Pela primeira vez, a rua ficou livre de pedintes.

Os rumores falavam sobre a existência de um mercado negro onde o principal produto comercializado era a carne humana.

O rumor logo se tornou um segredo compartilhado.

Todos sabiam, mas ninguém falava sobre isso.

Criminosos eram punidos em fazendas clandestinas, sua carne vendida para quem tinha dinheiro pra pagar por ela.

Pessoas com grandes dividas também eram presas nas fazendas, as mulheres estupradas e seus filhos vendidos até pagarem o valor devido.

O conceito de justiça com as próprias mãos deixou de ser um medo para se tornar uma certeza.

Enquanto isso, no palácio, acontecia uma grande investigação para descobrir o que estava acontecendo, nomear culpados e todo o povo cobrava do rei uma solução para o problema.

Mesmo assim, muitos ficaram surpresos com o decreto do rei, que escolheu legalizar o comércio de carne humana.
Ele criou regras que não falavam em sequestro e assassinato, mas em livre arbítrio e injeções indolores.
As pessoas que assim desejassem podiam trabalhar nessas fazendas, tendo filhos e os vendendo por dinheiro.

Com isso, surgiram as primeiras fazendas que se autodenominavam civilizadas. Seu lema era evitar o sofrimento do gado, que era criado com conforto, e levado a acreditar que teria uma recompensa no céu ao se sacrificar por uma causa nobre.

Parecia a solução perfeita, mas ignorava completamente a desigualdade social que se tornou gigantesca, após boa parte dos trabalhadores rurais perder seu emprego, açougues e mercados irem a falência e diversos restaurantes fecharem as portas.

O custo dessa produção responsável era altíssimo e somente famílias abastadas eram capazes de garantir carne na mesa.

A maior parte da população passava fome, muitos viraram pedintes, o que só fortaleceu o mercado ilegal.

20 Contos de Terror (Pior que a Morte)Where stories live. Discover now