Quando você devolveu minhas asas

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O muro já não era mais tão baixo, e os donos da casa colocaram espinhos para desencorajar bandidos. Ela ainda conseguia espiar a casa, que em suas melhores memórias havia sido rosa, mas agora estava pintada de azul. O portão também era novo, diferente do enferrujado por onde Carla havia atravessado incontáveis vezes. Ela sorriu quando se imaginou ouvindo a voz da mãe de Adele lá de dentro, chamando as duas para um lanche. Com relutância, voltou a se mover para o fim da rua.

A casa da mãe — não mais dela, nunca realmente foi dela — era como quase todas as outras da rua, porém de alguma forma parecia mais sem graça e sem alma. Lodo encobria as paredes, que não eram pintadas há algumas estações. Havia um muro coberto por plantas que pareceria encantador, se não fosse o descuido. Ele contribuía para o aspecto abandonado da casa, e para a sensação de sufoco que Carla sentia enquanto entrava.

— Mãe? — Ela chamou da sala quando avistou itens jogados no corredor. Pertences dela. Carla franziu a testa e se aproximou ansiosa, temendo encontrar o estrago em seu quarto.

A mãe estava sentada na antiga cama de Carla, de costas pra ela e fumando um cigarro. As poucas roupas que Carla tinha deixado para trás estavam no chão, e as gavetas reviradas. Felizmente, nada frágil parecia quebrado.

— O que tá acontecendo? — Ela indagou e a mãe apagou o cigarro num cinzeiro antes de suspirar.

— Fui procurar se você tá usando drogas.

Era uma acusação absurda e não a primeira vez que Carla ouvia aquilo. Seu comportamento errático sofreu escrutínio da família diversas vezes.

— Por eu ter saído de casa? — Carla falou da maneira mais calma que conseguia, tentando não rir do ridículo para não agravar a mãe.

— Você tem agido estranha desde antes. Me desafiando o tempo todo. Isso é por causa daquela...? — Carla não iria tolerar mais ofensas. Ela não precisava mais engolir nada.

— Eu terminei com a minha namorada há quase dois meses. O que você saberia, se ao menos reconhecesse que ela era minha namorada. — Ela apontou, cruzando os braços. A mãe se virou ainda mais de costas.

— Não adianta. Eu não aceito. Não aceito. — O tom de voz engrossou. Carla pensou no quanto ela parecia patética e imatura, repetindo aquela frase infantil com tanto desespero.

— Ok. Eu não preciso que você me aceite. — Carla começou a cuidadosamente pegar suas coisas, que era o propósito da sua visita. Tentou parecer confiante, mas a voz tremia de leve, bem como suas mãos e joelhos. Talvez estivesse arriscando um tabefe.

— Você odeia tanto a sua mãe?

Ela reconheceu aquela mágoa na voz e quis revirar os olhos, porque não importava o que Carla dissesse, sua mãe sempre acharia que era tudo pessoal.

— Se você acha que eu existir sendo eu mesma é te odiar, eu acho que isso diz mais sobre como você se sente sobre mim.

— Não ouse!

— Você devia estar contente. Sempre quis estragar meu namoro. Você diz que não aguenta me ver tão depressiva o tempo todo, mas nunca, nunca apoiou minha felicidade. — Carla não queria elevar a voz, não queria lacrimejar, não queria escalar as coisas para uma briga, mas ela precisava lutar de volta uma única vez. — Você sempre me comparava com outras pessoas. Nunca disfarçou que preferiria ter a Adele de filha.

— Eu nunca disse isso! — A mãe se virou para ela, horrorizada e boquiaberta, mas Carla só riu com lágrimas nos olhos.

— Ah, claro. Como se fizesse alguma diferença. A única vez que você me colocou de forma favorável contra ela foi quando descobriu que a Adele é lésbica. — Ela apontou o dedo para a mãe. — Lembra? Você disse "quem diria que uma menina tão boa teria esse problema?"

Quando Eu Ainda Amava VocêWhere stories live. Discover now