Dia 10

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Chinook (USA) - 2 pm

Henry mal sentia o pé sobre o acelerador, enquanto disparava pela estrada. Empurrava com tanta força, e seu corpo estava tenso como um chicote esticado, que seus membros inferiores estavam à beira da dormência. Ele não sabia, mas eles ainda resistiam à insensibilidade unicamente porque seu coração batia tão forte que o sangue conseguia permanecer em movimento.

Olhou pelo retrovisor e viu a nuvem negra se espalhando. Ficava cada vez mais larga, e talvez isso fosse o seu fator de vantagem: ela só não o havia alcançado ainda porque espalhava-se mais para os lados do que na direção da estrada. Mas ele sabia que não podia continuar com isso por mais tempo. O tanque estava na reserva, ele precisava descer e encontrar abrigo.

"Se é que existe algum abrigo capaz de me esconder."

Tinha passado pela entrada de uma cidadezinha, não chegou a ler o nome na placa, mas agora trafegava no que parecia ser o início de uma rua principal. Parou em um semáforo, calculando se não teria tempo de pôr gasolina no tanque e seguir viagem. A ideia de continuar em movimento lhe parecia mais segura do que qualquer outra, mesmo que não acreditasse que a fuga era possível. Pelo menos, não uma fuga real, onde pudesse ficar livre daquelas coisas. Mas com sorte, poderia dirigir até o fim do mundo. Ou quem sabe, até o inferno. Lá, o capeta poderia lhe explicar o porquê de ter soltado essas pragas na Terra.

Despertou de suas conjecturas com uma comoção vinda da calçada. Olhou para os lados e viu as pessoas parecendo confusas e apontando para trás. Ele já sabia do que se tratava, mas olhou pelo retrovisor, para calcular quanto tempo lhe restava. Não era muito.

Avançou o sinal, desviando de uma caminhonete, e parou o carro em frente a uma loja de ferramentas. Entrou na loja procurando por algo para travar as portas, enquanto alguns clientes o olhavam.

- Com licença, senhor, eu posso lhe ajudar? - um rapaz usando o uniforme da loja se aproximou.

- Pode sim, me ajude com aquelas sacas de cimento, vamos usar como um apoio para dar firmeza à porta, uma barricada. - Henry respondeu, enquanto carregava uma barra de ferro que ele acreditava ser do tamanho certo para usar como tranca.

- Eu... não entendi, senhor. Como assim, apoio para a porta?

Henry já conseguia ouvir os zumbidos. Acontecera a mesma coisa em sua cidade, um zumbido que você mal escuta, mas que está lá e vai ganhando força em seus ouvidos, aos poucos. Sabia que não restava muito tempo, nem mesmo tempo para discutir.

- Nós vamos trancar essa porta, é disso que eu estou falando. - e apontou sua pistola para o rapaz. Houve uma agitação na loja, mas Henry não deu atenção. Em poucos minutos eles saberiam o porquê de tudo isso. O rapaz não questionou mais nada também, fechou a porta e começou a colocar os sacos de cimento. Henry designou mais um par de homens fortes para ajudarem na tarefa.

- Vai, vai, vai, anda! Rápido com isso! - rangia os dentes sem parar e seu olhar alucinado assustava as pessoas mais do que a arma. Um homem desesperado pode cometer atos de loucura, com ou sem arma. Claro que com arma ele tem uma vantagem óbvia. - Passa essa barra pelos puxadores, pra servir de tranca, vai!

Mal a barra fora colocada, uma mulher, carregando uma criança, e dois homens surgiram e começaram a bater na porta, gritando para que a abrissem. As pessoas na loja se aproximaram, momentaneamente esquecidas do homem armado, a curiosidade pelo que estava acontecendo lá fora mais forte do que tudo. Só Jimmy, o rapaz que se dirigira a Henry, voltou-se para ele, buscando respostas. Henry olhava para fora, esperando, antecipando a cena que ele já vira acontecer em sua cidade, com sua família. Mas percebeu o olhar sobre si e encarou Jimmy, que pareceu ler em seus olhos o terror que estava por vir e começou a se afastar para os fundos da loja.

A nuvem negra engolfou a rua e começou a se espalhar para os lados. A princípio parecia fumaça, mas então as pessoas perceberam que ela era composta por milhares de pontos voadores, e que havia um zumbido no ar, ondulante, instável, mas constante.

- São moscas, que nojo! - uma jovenzinha gritou e abraçou o pai. Por um segundo, as pessoas na loja olharam umas para as outras, confusas sobre o que fazer nessa situação inusitada. As quatro figuras do lado de fora ainda batiam no vidro, implorando para entrar, mas ninguém se mexia. Quer dizer, era um enxame de moscas. Nojento, mas não podia fazer mal a ninguém. Ledo engano.

Os homens começaram a se sacudir, espanando o corpo em uma dança frenética para se livrar dos insetos, enquanto a mulher tentava cobrir a criança. Ela acabou tirando o casaco para envolve-la completamente, e foi aí que as pessoas dentro da loja viram o que estava acontecendo. As moscas pousavam no braço da mulher e os pontos na pele começavam a sangrar, como se elas estivessem mordendo-a, escavando-a. Ela nem tentava se defender, só abraçava a criança com força, enquanto pequenos filetes de sangue escorriam pelos braços. As moscas que conseguiam abrir caminho se infiltraram na pele e os pequenos calombos móveis no braço da mulher fizeram o pai da menina que gritara há pouco virar-se para vomitar.

- Reforcem a barricada, eles não vão ser os únicos a tentar entrar, temos que impedir que a porta ceda! - Henry gritou para o grupo.

- Nós não devíamos... ajuda-los? - uma idosa perguntou hesitante.

- Quer abrir a porta? Sabe um jeito de fazer isso sem que esses bichos entrem aqui? Se acha que dá, me diz como e eu, pessoalmente, te jogo lá fora. Mas como eu acredito, e sei que vai concordar comigo, que não vamos encontrar nenhuma maneira de abrir a porta sem que essas pragas infernais entrem aqui e façam um mingau com os nossos corpos, acho que teremos que nos conformar que a única coisa a fazer por eles é orar pela salvação de suas almas.

A pobre senhora abaixou a cabeça, sem ter o que responder e ninguém se atreveu a retrucar. A verdade era nua, crua e cruel: nenhum deles estava disposto a morrer, para bancar o bom samaritano e tentar salvar alguém lá fora. E, na verdade, sentiam-se muito gratos por aquele desconhecido havê-los trancado na loja, já que isso os havia salvo. Pelo menos, temporariamente.

A InvasãoOnde histórias criam vida. Descubra agora