Vislumbre do Passado

747 127 40
                                    

A porta range alto e o som comprido de arrasta para dentro da sala de estar escura, iluminada apenas pelo feixe de luz do dia que entra pela porta que acabo de abrir. Respiro fundo antes de dar um passo a frente, tateando a parede de tijolos áspera em busca do trinco de metal. A janela se abre também com um rangido fraco e ilumina o cômodo com a luz que vem do lado de fora, as lamparinas da cidade subterrânea derramando um brilho amarelado sobre a mobília coberta de poeira.

–– Mas que merda... –– Resmungo entre uma crise fraca de tosse quando a nuvem de poeira me abraça. Me pergunto há quanto tempo essa casa está vazia enquanto acendo a lamparina velha de cobre sobre a mesa, observando o cômodo que não vejo há tantos anos.

A casa que dividi com o meu pai por tanto tempo ainda parece a mesma apesar de que tenho a sensação de que ela é muito maior sem ele ou sem sua voz firme preenchendo os cômodos me contando sobre o seu dia ou fazendo alguma piada ruim. Solto um suspiro longo, abrindo as outras janelas e observando os outros cômodos, tão empoeirados quanto poderiam estar. A pouca luz do dia que se mistura à luz artificial no solo é o suficiente para iluminar a casa e decido que não consigo ao menos raciocinar no meio de tanta poeira.

–– Esse lugar está horrível. –– Murmuro para mim mesma, pendurando o casaco dado a mim por Kenny em um gancho na parede e prendendo o cabelo em um rabo de cavalo alto. –– Vamos, Sofia. Se ocupe com alguma coisa.

–– Como você se chama? –– O homem que viria a se tornar meu pai perguntou baixo e apenas ergui os olhos dos legumes cozidos no meu prato para ele.

–– Sofia. –– Respondi com a boca cheia, fazendo uma pausa para engolir a comida. –– Só Sofia.

Ele inclinou a cabeça para o lado ligeiramente e logo em seguida cruzou os braços na frente do corpo, deixando um sorriso fraco transparecer em seu rosto por alguns instantes. Minha mente viajava entre pensamentos que iam da minha mãe até o quão boa estava a sopa que eu devorava sem classe ou maneira alguma, sendo talvez a primeira coisa que estava comendo naquela semana. O homem me olhava em um misto de pena e curiosidade, e decidi que me preocuparia com ele depois.

–– Você pode ficar comigo, se quiser.

Parei diante de sua fala, a colher erguida na metade do caminho entre o prato e a minha boca, a pousando novamente enquanto o encarei com o cenho franzido. No mesmo instante, olhei na direção da porta e para as janelas entreabertas.

–– Não vou fazer mal a você, não precisa fugir. –– Ele disse como se lesse os meus pensamentos.

–– Por que você me ajudaria? –– O questionei. –– Eu sou só uma órfã.

–– Eu também era. –– Ele deu de ombros. –– Meu nome é Marco. Eu não tinha um sobrenome também, até encontrar uma mulher que cuidou de mim e me deu o seu.

Me recostei na cadeira de madeira, ligeiramente interessada na história que ele começava a contar.

–– E agora você é...

–– Ackerman. É um nome difícil de carregar e de sair falando por aí. –– Ele fez uma pausa e um sorriso triste pairou em seu rosto. Não tinha idade o suficiente para compreender totalmente suas palavras, mas eu sabia como as pessoas diferentes eram mortas e desapareciam misteriosamente no meio da noite. –– Mas eu me orgulho dele.

Por um momento, um silêncio confortável pairou entre nós e o olhei com cautela. Era um homem alto e esguio, de olhos pequenos e cinzentos que contrastavam bem com sua pele branca e barba por fazer. Não se parecia com nenhum dos homens desconhecidos com quem a minha mãe se encontrava e tampouco com os homens maus que eu já havia visto. Tomei a colher novamente em minhas mãos e mastiguei satisfeita um pedaço macio de batata. Não é como se eu tivesse algo a perder.

O Rouxinol - L. AckermanWhere stories live. Discover now