Depois da Chuva

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Meus olhos estão pesados como que se minhas pálpebras não quisessem nunca mais se abrir para a luz do dia outra vez. Os abro com dificuldade sentindo minhas retinas arderem em contato com o ar frio e tento respirar fundo, sendo impedida por uma pontada aguda em meu tronco. Como se eu me lembrasse de tudo em um único instante, as imagens do campo coberto de sangue, dos titãs e da cabeça da garota jogada diante de mim giram na minha mente como em um redemoinho.

Entretanto, meu corpo não está mais encharcado e caído na grama. Meus olhos encaram o teto do que reconheço ser o meu dormitório no quartel de Trost. Em meus ouvidos chega o que reconheço ser barulho de chuva forte contra a janela de vidro e sinto algo pesado sobre as minhas pernas. Não posso deixar de sorrir fraco quando vejo Mike deitado nos pés da cama com um livro aberto diante de sua forma adormecida.

Tento não o acordar enquanto tento me sentar mas é inevitável com o grunhido de dor que escapa dos meus lábios diante da menor movimentação. Sinto bandagens pressionando a minha pele por todo o meu tronco e tento imaginar o que mais em mim está quebrado agora.

–– Sofia! –– Mike se levanta desajeitado, passando as mãos pelo rosto e se sentando próximo de mim na cama, colocando uma de suas mãos sobre a minha. Os olhos verdes checam todo o meu rosto, preocupados. –– Que bom que você acordou. Como se sente?

–– Como se um titã tivesse me pisoteado. –– Resmungo, piscando algumas vezes para me acostumar com a claridade no quarto. –– O que aconteceu? Onde estão os outros? Erwin e Hange...

–– Eles estão bem. –– Mike me tranquiliza e solto o ar dos pulmões como se um peso deixasse os meus ombros. –– Um dos novatos a trouxe de volta.

De súbito outras lembranças explodem na minha mente, uma seguida da outra. O rosto do garoto contorcido em dor e raiva diante da visão de seus amigos mortos, completamente o oposto da indiferença com a qual me tratou quando nos vimos na capital. Penso comigo mesma que Isabel e o garoto, Farlan, deveriam ser importantes para ele.

–– Karasu encontrou vocês. Estava quase sem respirar quando chegou e o médico disse que não deveríamos ter muita esperança. –– Mike solta um suspiro arrastado. –– Mas aí está você.

–– Eu não poderia morrer sem me despedir de você. –– Sorrio para o loiro, que retribui.

Mike Zacharias era um dos garotos mais velhos da nossa turma de cadetes e nunca havia deixado de cuidar de mim como um irmão mais velho faria. Não tive uma família normal e quando o meu pai morreu, Mike foi o único que ficou por longas horas sentado ao meu lado em silêncio enquanto contemplávamos a lápide diante de nós. Eu realmente não poderia ao menos pensar em morrer sem dizer adeus à ele.

–– De qualquer forma, tivemos muitas perdas.

–– Conte uma novidade... –– Suspiro, exausta. Estar no Reconhecimento sempre foi para mim uma forma de manter viva a memória do meu pai, mas retornar com cadáveres mutilados nunca foi bom. –– Me ajude a levantar.

Mike hesita por um instante mas concorda, se colocando de pé e oferecendo suas mãos para que eu as use de apoio. Meus pés se firmam com dificuldade no chão e demoro um pouco até conseguir equilibrar meu peso sobre eles, mas por fim consigo. A chuva cai forte contra a janela e o som ecoa pelo quarto, entrecortado pela minha respiração lenta e ligeiramente ofegante.

–– Keith disse que queria vê-la assim que você acordasse. –– Mike diz ao meu lado e ergo os olhos para ele. –– Posso dizer a ele que ainda está dormindo, se quiser descansar mais.

Sorrio fraco diante de seu cuidado.

–– Está tudo bem. Vou ficar maluca se ficar mais um minuto nessa cama. –– Digo a ele, que sorri em resposta.

O Rouxinol - L. AckermanWhere stories live. Discover now