2 . Último dia

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- Vamos nos mudar de casa. Um lugar melhor. - A mãe disse para o garoto de 14 anos, com um sorriso esperançoso nos lábios. - As despesas aqui só aumentam, e o que ganho não nos manterá por muito tempo...

O garoto estava pensativo. Como quase sempre.

- Vamos para casa do Roberto? - indagou.

A mulher confirmou.

"O seu namorado não é quem parece, mãe. Eu sei.", O menino pensou, iria dizer... mas preferiu o silêncio e assentiu com a cabeça, concordando com a mudança de casa.

Em poucos dias, prepararam tudo e se mudaram.

O menino se adaptava com a nova casa, aos poucos. A presença de um homem que pouco conhecia lhe era irritante, principalmente para ele que convivera só com a mãe a vida toda. Mas nada dizia. Sua mãe aparentava felicidade, isso bastava para ele. Se ela estivesse bem, ele também estaria.


Alguma semanas depois da mudança, chegara em casa após o dia na escola. Se deparara com alguns objetos, meio velhos e sujos, acomodados num canto qualquer do seu quarto. Perguntara para sua mãe sobre o que eram, ela disse que eram do Roberto e seriam guardados num depósito, em alguns dias. Ele, mais uma vez, abaixou a cabeça e concordou.

Sentou-se na sua escrivaninha de madeira e se pôs a estudar. Como sempre fazia. Tinha um pedaço de espelho manchado sobre o lugar. - um dos objetos que apareceram lá. Com cuidado, pôs o espelho encostado numa parede.

Batidas na porta. O namorado da mãe entrou com mais um objeto em mãos. Pôs debaixo da cama do menino. Antes de sair do recinto, o homem vasculhou o quarto com os olhos. Fixou-se no espelho que não estava onde deixara.

- MOLEQUE, QUEM TE MANDOU TIRAR ESSE ESPELHO DO LUGAR DELE?? - O homem falava, alterado, apertando o braço fino do menino.

- Eu... eu... só tirei pra por meus livros... - respondeu, o coração acelerado, olhos arregalados.


Correu pra perto da sua mãe.

- Calma, filho. Ele só está um pouco cansado. Isso não vai acontecer novamente.


O primeiro ano se passou. No dia-a-dia, situações como essa viraram rotina. "Sua vadia. Eu sustento você e a sua bichinha!" Ele costumava a berrar para a namorada. Os vizinhos ouviam. Contudo, ela não ficava quieta. "Eu sempre sustentei a mim e ao meu filho. Sozinha! Não precisamos de você!". De certo modo, agora, eram dependentes de Roberto. A mulher pensava que poderia mudá-lo. Algumas vezes ele melhorava, sempre que a pressão arterial subia e ele ia para no hospital. A paz reinava por uma ou duas semanas. Momentos em que ficava mais gordo. Contudo, logo as ofensas voltavam...


A casa ganhava mais e mais objetos velhos, que ficavam jogados aos cantos. O homem pensava que poderia aproveitar qualquer coisa. Vendia algumas coisas, e juntava dinheiro. Porém, muitas vezes, só juntava entulhos.


Mais um ano se passara. E a situação era a mesma. Uma vez o homem agrediu a mulher, o menino tentou impedir... foi empurrado pra longe, com força, batendo a cabeça. Diante do sangue na cabeça do filho, a mulher avançou no homem. Arranhou o rosto dele com raiva. Passaram uma semana sem se falar. O menino inconformado com a submissão da mãe diante do monstro. "Ela precisa dele...E eu não posso ajudá-la em nada... Mas um dia... ele vai pagar por tudo isso!", pensava, enquanto chorava no quarto.


- Logo tudo vai passar. A mamãe vai comprar a nossa casa e eu expulso esse homem da nossa vida. Mas, calma. Espera só mais um pouco! A mamãe te ama e não vai deixar nada de mal lhe acontecer. - Dizia chorando para o filho.


Outro ano. O menino se tornava, aos poucos, um rapaz. Inteligente. Sagaz. Forte. Próximo de fazer 18 anos. "Ou é agora, ou vai ser nunca", o garoto pensava consigo.

Numa tarde, se preparando para ir para o cursinho pré-vestibular, o homem chegou em casa, no carro velho, e pediu para o menino tirar um ar-condicionado que estava no carro. O menino suspirou e foi fazer o que o homem pediu. Ao levantar a grande caixa de ferro, se corta. O aparelho caiu no chão e ganhou uns amassados. O homem correu com fúria pra cima do garoto, acertando um murro em seu peito...

- VOCÊ SABE QUANTO CUSTA ISSO?! VOCÊ VAI PAGAR, DO SEU BOLSO! BICHA IMBECIL. - Gritava com o menino.

O garoto não reagiu, mesmo com a mão cortada e com lágrimas nos olhos, foi pra rua e pegou seu ônibus.

No mesmo dia, ele chegou em casa e encontrou a mãe com um dos olhos roxo e um hematoma no braço.

O ódio do menino crescia exponencialmente "Chegou a hora de você nos pagar por tudo..."

Ao amanhecer, Roberto encontrou um tambor no portão de sua casa. Estranhou. "Que diabos é isso?", indagou-se. Ao verificar, viu que era querosene. Tomou aquilo como sua propriedade e já sabia para quem vender. Chamou o enteado e com sua ajuda, deram um jeito de colocar o barril azul na traseira da pequena caminhonete velha. Um macaco hidráulico guardado nas tranqueiras do homem foi de grande ajuda. Com muito trabalho, conseguiram.

O homem, de samba canção mesmo e sem camisa, entrou no carro e deu partida. "VOU GANHAR UM DINHEIRÃO VENDENDO ISSO", e saiu rindo.

O menino, com um sorriso no rosto, apenas acenou e disse para Roberto:

- Seja feliz, tanto quanto você fez de nós...

O homem ouviu e não se importou com as palavras do garoto. A caminhonete trepidante se afastava.


O carro velho ia... 5 metros. 8 metros. 10 metros. Mirou a carroceria do carro. Respirou fundo, acionou o isqueiro. Arremessou. Foi como uma flechada no centro do alvo. Um tiro no meio da testa do bandido. E veio a grande explosão. A onda de ar quente o atingiu. Um sorriso. Uma gargalhada de felicidade. Uma lágrima de alívio. A PAZ.

O menino abraçou a mãe.

- Acabou. Podemos viver em paz agora, mãe.

A mulher nada dizia. Estava em choque. Mas também sentia paz dentro de sí.

O pouco que o homem deixou foi vendido. Um apartamento fora comprado.O rapaz nunca disse para ninguém o que aconteceu naquela fatídica manhã. Aquilo morrera com o monstro.

Para a perícia, o carro muito velho causara o acidente.

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O barril fora comprado pelo próprio garoto, de ladrões de combustível do aeroporto da cidade. Como combinado com os homens, fora deixado de madrugada no endereço pedido.

O menino sabia que a ganancia do homem falaria mais alto. Ficara preparado. O isqueiro no bolso. O macaco hidráulico por perto. A tampa do barril entreaberta. Assim, não precisariam da ajuda de ninguém. A mira fora auto-superação, em busca da paz, da vingança.



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